• Cuiabá, 19 de Julho - 2025 00:00:00

Nas Favelas, a Ditadura Nunca Acabou


Paulo Lemos

Por que, em pleno século XXI, ainda precisamos gritar que vidas negras e mestiças importam? Por que a favela segue sendo tratada como território inimigo? E por que tantos jovens morrem antes mesmo de sonhar?

A resposta está na frase que ecoa nas periferias do Brasil: “Nas favelas, a ditadura nunca acabou.”

Para boa parte da população, a redemocratização do Brasil em 1985 foi um marco histórico. Mas, para quem vive nas quebradas, nas palafitas, nos morros e vielas, o fim oficial do regime militar não significou o início de uma vida mais segura, digna e livre.

Pelo contrário: a repressão mudou de farda, mas continuou com o mesmo alvo — os corpos negros, pobres e periféricos.

"O sistema quer nos transformar em traficante, preso ou morto", já cantavam os Racionais MC's, alertando que a democracia nunca chegou inteira na quebrada.

No papel, somos todos cidadãos com direitos iguais. Na prática, o CEP ainda define quem tem acesso à cidadania plena e quem vive sob um estado de exceção cotidiano.

Enquanto nos bairros ricos a presença do Estado se manifesta em serviços, saúde e infraestrutura, nas favelas ele aparece com o dedo no gatilho, com caveirões, helicópteros e tiros “perdidos” que sempre encontram corpos negros e mestiços, agora também dos imigrantes da América Latina.

"Quem tem coragem enfrenta o sistema, quem tem medo se cala e consente", denuncia Gabriel o Pensador.

Essa democracia desigual tem cor, classe e território.

Os dados mostram: as polícias brasileiras seguem entre as que mais matam no mundo — e quem morre são, majoritariamente, jovens negros, moradores de favelas. Não adianta negar, dizer que é exagero, pois é a mais pura e crua realidade.

Isso não é acaso: é projeto. "A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras" — não é só estatística, é genocídio com data, endereço e sobrenome.

Durante a ditadura militar (1964-1985), o Brasil viveu anos de censura, tortura, perseguição política e medo.

Mas, para a favela, essa lógica autoritária nunca foi novidade.

Desde muito antes, o povo preto e mestiço já conhecia o peso da bota estatal. E depois do fim da ditadura, esse povo continuou sendo tratado como suspeito, perigoso, descartável.

"Favela ainda é alvo, favelado ainda é réu", diz Mano Brown em tom grave.

A militarização da vida nas favelas — com operações que parecem mais guerra do que policiamento — mostra que, para milhões de brasileiros, o Estado não é presença protetora, mas ameaça constante.

Direitos? Só no discurso. Liberdade? Só para alguns.

A frase que dá título a este artigo é um grito coletivo, nascido da dor, mas também da lucidez. Ela denuncia o racismo estrutural que sustenta o sistema.

Não se trata apenas de “excessos” ou “erros operacionais”. Trata-se de uma lógica construída historicamente para manter as coisas como estão: poucos mandando, muitos obedecendo; poucos vivendo, muitos sobrevivendo.

Pior: boa parte da sociedade naturalizou esse abismo.

Quando uma chacina acontece em uma comunidade, a maioria nem se comove.

Quando um jovem é morto “por engano”, o noticiário trata como “efeito colateral”.

Mas se fosse em um bairro nobre, seria tragédia nacional.

"O problema é social, antes de ser policial", lembram os Racionais.

Mas isso poucos querem encarar.

Emicida vai direto ao ponto: "A cada esquina um dragão, mas também cada beco tem uma flor".

Mesmo diante de tanta dor, a favela não se curva. Se reinventa. Resiste. Luta.

É na ausência do Estado que surgem as redes de apoio, os coletivos culturais, os mutirões de solidariedade, os projetos de educação popular. "A periferia é o centro do mundo", e a favela é potência criadora, não apenas vítima. É berço de artistas, pensadores, líderes comunitários e sonhos que insistem em florescer no concreto.

Dizer que a ditadura nunca acabou é também lembrar que a democracia verdadeira só virá quando ela chegar para todos.

Quando nenhum corpo tiver que correr da polícia por existir.

Quando a favela for respeitada como parte da cidade, e não como um problema a ser “combatido”.

Enquanto houver território onde o medo é mais presente que o direito, onde a bala vem antes do nome, onde a liberdade não passa de promessa vazia, não há democracia completa no Brasil.

"Sou mais um sobrevivente. Um marginal, um alvo, um réu, um homem invisível pra você. Mas um milagre pra quem me quer bem." (Racionais)

A favela grita. E é preciso escutar.

Paulo Lemos é advogado especialista em Direito Público-administrativo e Eleitoral, professor de Filosofia, Direito Constitucional e Direitos Humanos, Terapeuta, Analista Político-social e Escritor.




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