• Cuiabá, 09 de Abril - 00:00:00

Velhas Lembranças

Ainda não eram 6 horas, quando as portas foram abertas por um dos garçons. Cena rotineira por ali. O café se localizava bem na esquina da moderna avenida com a travessa. Esta foi à única que sobrara das três que existiam há cinco ou seis décadas, e elas se bifurcavam, o que deixava à mostra um pequeno largo, espremido por antigos casarões, e estes se destacavam exatamente por seus telhados avançados, pintados de branco e azul, os quais protegiam as paredes externas da chuva, bastante frequente em determinado período do ano. Detalhes despercebidos por uma porção de gente. Mas não foram pelo homem, modestamente vestido, que trazia em uma das mãos uma caderneta, a qual, vez ou outra, era aberta sempre em suas páginas derradeiras, onde ele, de olhar profundo e meticuloso, anotava algumas coisas. Foi, então, que um dos pedestres, mais ou menos de igual altura, porém um pouco mais gordo, sem qualquer cerimônia, bem próximo, indagou-lhe baixinho: “E aí, entendeu por que se diz ‘sem eira nem beira’?”  

Expressão popular. Bem mais usada antes que nos dias atuais. E isto, talvez, se deva ao corre-corre do dia ou, por certo, pela perda gradativa do cuidado com as coisas idas e vividas, ainda mais tão distanciadas do presente, embora de pretérito instigante. De todo modo, o dito continuava provocativo, pois mexe com dois pontos teimosamente corretes: o ter posses e o sem posses, sem prestígio social.

Envolvido com tal pensamento, o homem se demorou a virar-se, e, quando o fez, a pessoa que acabara de lhe falar, já tinha se afastado, misturada com as outras, com o mesmo destino, o Café, a dez ou doze metros dali. Era o que muitos faziam àquela hora. Ele sorriu. Ao sentir-se observado, deixou de sorrir. Gesto que nada tinha a ver com vergonha, pois, a bem pouco, estivera no seu dentista, um amigo de infância, cuja destreza com a bola nos pés era a mesma que tinha com o jato de bicarbonato com as mãos. No lugar do sorriso, então, três ou quatro lágrimas brotaram-lhe dos olhos e avançaram pelo rosto, uma vez mais, escondeu-se. Já não era mais o acanhamento que lhe aflorava pelos poros, mas sim a lembrança do tempo que se foi, e levou consigo e para longe as imagens da gurizada que corria atrás de uma bola, também em um largo, igual aonde ele se encontrava.

Pessoas iam e viam. Pouquíssimas se davam ao trabalho de observar o cenário a sua volta, uma mistura do modernoso com o colonial. Não viram o que já não mais se podiam ver. As velhas árvores. Assim, o centro da cidade se perdia entre o vazio do que havia e o do existente, espremido pela falta de lembrança do que acabara de se esvair, logo esquecida. Embora guardada pela memória, a qual não mais acionada como deveria ser. Pois se vê trocada pela do aparelho de celular, cujas teclas são incansavelmente manipuladas, até mesmo para “bater” uma foto, que será levada as redes sociais, onde dezenas, centenas de amigos a curtirá. Amigos que jamais estão por perto. Ainda que presentes, através de mensagens que vão e vem, pois as linhas online não têm sinal vermelho, nem o amarelo, apenas o verde que falta ao lugar, um dia conhecido de “Cidade Verde”. Desnudaram-na para a construção, e, desse modo, sufocaram seus córregos até a morte. Restam-lhe dois ou três deles, mas, mesmo nestes, não correm o alvo das águas, mas a sujeira dos dejetos, que saem das casas, casarões e arranha-céus. Parte deste esgoto ameaça um de seus parques, e todos se mostram preocupados com a carestia da vida, menos com o cinza e o ar abafado pela fumaça. E aquele homem se deixou levar pelas lembranças de outro lugar, e uma delas lhe trazia a imagem de uma escultura em ferro, criada para sustentar uma velha árvore. É isto.

 

Lourembergue Alves é professor universitário e analista político. E-mail: Lou.alves@uol.com.br.    



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