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Um pouco de Maria... da Penha

  • Artigo por Emanuel Filartiga Escalante Ribeiro
  • 03/05/2019 07:05:47
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Em meus dedos é presente a advertência de François Poulain de La Barre: "Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a um tempo, juiz e parte."

Mas preciso ousar, no sentido pleno desta palavra.

Pode haver uma forma mais expressiva de desamor do que considerar uma pessoa uma coisa? Lamentavelmente, é isso que acontece nove, entre dez vezes, na violência de gênero no âmbito doméstico, familiar e na relação íntima de afeto.

Sim! A humanidade, ainda, é masculina e o homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo, capaz de dar a si a própria lei, dona do seu próprio destino. Segue o desafio de "ser pessoa" e luta, todos os dias, contra o sequestro de sua subjetividade.

As dores são muitas em ser mulher que quer amar.

A Maria afirma que não sente seu corpo seguro em nenhum lugar: como sentar, como andar, que roupa colocar, como proteger seu corpo das mãos, dos olhos, das facas, dos cintos, do fogo, da água quente, das armas de fogo;

A Maria não quer mais ser vista, esconde-se: do olhar dele que a julga, dos outros que a invade, do dele que a censura e reprova, do olhar que a diminui, a violenta, que diz quem ela é ou que diz que ela não é;

Maria quer "ser dela": não quer ser dele, da voz dele, do que ele diz que ela é, de modo algum serdevassada quando anda pelas ruas, se defendendo dos olhares, das vozes, das atitudes e das mãos dos estranhos;

Maria não quer ser mais violentada com tapas, palavras, gestos, olhares, pratos, móveis, facões, fogoe revólver: por não dar a senha do celular, por não lavar a roupa ou não fazer a jantar, porque teve que levar o filho aomédico, por não estar pronto o almoço, por não concordar, pela cama mal feita, por não ouvir, por não olhar, por não sentir;

Maria não quer mais sentir medo: dos professores homens, dos médicos homens, dos chefes homens. Dos tios e dos primos. Dos padrastos e do pai. E dele...que, sobretudo, não deixa ela ser. É sério, "há pessoas que nos roubam e há pessoas que nos devolvem".

Maria não quer mais ser "pessoa que não é": porque impõe que roupa ela deve vestir, como ela deve se portar, o que ela deve fazer, senão ela é "errada" - por ter escolhido o lugar errado, a hora errada, a roupa errada, o cara errado; senão é "louca", senão é "mal-amada".

Já são livres, mas ainda não, diz o poeta. É que a conquista da liberdade se dá no mesmo decurso do"tornar-se pessoa". A violência ameaça a liberdade, é golpe forte no ser. Ora, o ser humano é essencialmente livre, é fim em si mesmo.

Mas as Marias sabem que a vida humana é travessia. Somos êxodos contínuos; enquanto estivermos vivos seremos convidados à mudança. E como um grito de liberdade já cantam: 

Ela desatinou, desatou nós (...) Eu não me vejo na palavra Fêmea: alvo de caça,conformada vítima.

Prefiro queimar o mapa, traçar de novo a estrada, ver cores nas cinzas e a vida reinventar.

E um homem não me define, minha casa não me define, minha carne não me define...eu sou meu próprio lar.

 

Emanuel Filartiga Escalante Ribeiro está Promotor de Justiça em Mato Grosso.



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