Dona Filhinha, minha mãe, se sentava no alto da escadinha – que dava acesso ao quintal pela porta externa de nossa cozinha. Lá nos fundos, a lendária Rio-Bahia, encascalhada, com seu trânsito leve, em boa parte com caminhões carregando paus de arara do Nordeste para São Paulo. Com um prato esmaltado abarrotado (excesso de comida, lá nós chamamos de Ibituruna). Com paciência, desfiava a carne de porco, a misturava com arroz, feijão, couve rasgada e farinha de milho torrada, e me alimentava sem necessidade de colher. Com as crianças em Alpercata, no Leste de Minas, era assim ou algo parecido. A vida passava com meu pai, Agenor, mergulhado nos afazeres no cartório e na política, até que em 11 de julho de 1961 Deus o levou.
A Rio-Bahia saiu da minha visão. Minas ficou no ontem; continua na memória – é aquilo que o poeta em sua simplicidade chama de saudade matadeira. Abracei Mato Grosso. Mamãe, velha, sempre pedindo a Deus pelos filhos, continuava alimentando a família por suas gerações mais novas, os netos e bisnetos, até que um dia fechou os olhos para sempre.
O implacável relógio biológico não perdoa. Passa segundo, mais segundo e segundo. Quando se dá conta, a vida passou e nos restam somente os problemas naturais da terceira idade, os remédios para isso, aquilo e aquilo outro. Felizmente Deus em sua infinita bondade nos eterniza sobre a Terra. Não com a perenidade da imortalidade, mas com a descendência. Pra mim, e minha mulher Wanderly, vieram a Jeisa, Agenor e Luiz Eduardo, e a eles se juntou a perradinha: Ana Júlia, Maria Carolina e Eduardo. Não há ciclo de vida para quem se faz suceder por seu sangue – graças a Deus!
Claro que a vida transcorre em etapas. Claro, também, que o corpo guiado pela mente molda-se à idade. Com naturalidade se aceita trocar o futebol pela caminhada. É assim, mesmo, mas para quem vive os netos é possível ser criança vendo-os brincando em sua santa inocência, rindo do mundo carrancudo, violento, desumano e desagregador pela ganância do dinheiro e do poder.
Ser criança na terceira idade na pele dos netos. Trabalhar para garantir o pão nosso de cada dia. Superar o diabetes, a cegueira monocular, a labirintite e fingir que não tenho quatro stents farmacológicos é garantir um imaginário pódio da vida todo santo dia. Administrar desejos. Saber perdoar. Estender as mãos, ainda que em gesto simbólico. E amar a Deus sobre todas as coisas. A vida é bela, é luz, é sopro divino.
Se me fosse dada a oportunidade de repassar todos os meus caminhos para que pudesse corrigir desacertos, não o faria. Não seria humano buscar a perfeição. Os erros na caminhada são imprescindíveis para se balizar os próximos passos. Além disso, não seriam 68 anos desde aquele choro em 28 de setembro de 1950, em Barra do Cuieté, de Conselheiro Pena, onde o Caratinga se rende ao rio Doce, que me fariam reiniciar sem a certeza de que teria comigo a descendência que Deus me deu.
Eduardo Gomes de Andrade é jornalista
eduardogomes.ega@gmail.com
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