• Cuiabá, 17 de Novembro - 2025 00:00:00

Nadar Contra o Iguaçu: Viver Numa Época de Vício e Exaustão


Paulo Lemos

A gente vive num tempo estranho. Nunca teve tanta informação, tanta tecnologia, tanta facilidade… e, ao mesmo tempo, tanta gente exausta, ansiosa, deprimida, sem vontade de nada. Se a gente olhar com calma, dá pra ver um “sintoma” bem claro dessa época: o vício no consumo e a obsessão por produtividade.

É como se o mundo repetisse o tempo todo: “consome mais, trabalha mais, aparece mais”. E quem não aguenta esse ritmo se sente fracassado.

Hoje, vício não é só droga, álcool ou jogo. Tem vício em celular, em rede social, em compra, em comer, em pornografia, em remédio pra dormir, em remédio pra acordar.

A pessoa não suporta ficar quieta, não suporta silêncio, não suporta ficar sozinha com os próprios pensamentos. Sempre precisa de um estímulo, uma tela, um barulho, alguma coisa chamando. O consumo vira remédio pra dor que nem sempre a pessoa sabe nomear.

E o consumo vem com uma promessa enganosa: “se você tiver tal coisa, você vai ser alguém”. Então a pessoa passa a medir a própria vida pela marca do celular, pelo carro, pela casa, pela viagem, pelo corpo, pelo que posta.

Quem olha de fora pensa: “essa pessoa venceu”. Mas lá dentro, muitas vezes, tem um vazio enorme. Porque comprar até dá um alívio rápido, mas não resolve o buraco de sentido, de afeto, de história.

Junto com isso, cresce a cultura da produtividade. É como se tivesse um chefe morando dentro da cabeça, gritando o tempo todo: “não é suficiente, faz mais, rende mais, mostra mais”. Não basta trabalhar, tem que performar. Não basta fazer, tem que aparecer.

A vida vira planilha: meta, resultado, engajamento, crescimento. E quem para um pouco, quem desacelera, já se sente atrasado, culpado, com a sensação de que está perdendo alguma coisa.

Nesse cenário, descansar vira quase crime. Tirar um dia pra ficar em paz, rezar, meditar, estar em família, ir à igreja, viver as bem-aventuranças, simplesmente respirar — tudo isso passa a ser visto como perda de tempo.

A pessoa até tenta parar, mas a cabeça cobra: “você podia estar produzindo”. Aí, em vez de descanso, vem culpa. Em vez de paz, vem a sensação de estar falhando.

O dinheiro entra como medida de valor da pessoa. E não é só ter o básico pra viver com dignidade; é transformar dinheiro em régua de importância. Quem ganha mais, vale mais. Quem aparece mais, importa mais. E quem está na luta, no aperto, já é visto como “menos”.

Com isso, a ideia de Deus, de fé, de sentido, de vocação, de servir aos outros vai sendo empurrada pro canto, como se fosse coisa de quem “já resolveu a vida”. Só que a gente vê, todo dia, gente com dinheiro sobrando e alma quebrada.

O resultado disso na saúde mental é cruel. Cresce a ansiedade, aquele aperto no peito, a cabeça acelerada, o medo de não dar conta. Cresce a depressão, o desânimo, a falta de vontade de levantar da cama.

Até crianças e adolescentes chegam no limite, cansados antes mesmo de começar a vida adulta. Porque o recado que eles recebem é: “se você não for o melhor, você não é nada”. E ninguém aguenta viver assim por muito tempo.

Só que o ser humano não é máquina. Cada pessoa tem história, tem ferida, tem desejo, tem jeito próprio de sentir e de viver. Pra se encontrar, precisa de tempo, de escuta, de conversa séria, de terapia, de oração, de silêncio.

Precisa perguntar: “o que eu realmente quero?”, e não só “o que esperam que eu faça?”. Mas a correria do ter atropela a pergunta do ser. Fica tudo no automático.

Quando alguém decide viver diferente, a sensação é bem essa: nadar contra a correnteza das águas do Iguaçu.

A pessoa escolhe trabalhar de um jeito mais saudável, ganhar menos e enlouquecer menos, ficar mais tempo com os filhos, cuidar da saúde, da fé, do corpo, abrir espaço pra silêncio, dizer não pra algumas propostas… e logo escuta: “você é bobo, vai perder oportunidade, o mundo não funciona assim”. Vem crítica de fora e dúvida por dentro.

Mesmo assim, é aí que muita gente começa a se curar. Quando a pessoa percebe que preferem chamá-la de “louca” do que ver sua alma morrer aos poucos, algo muda.

Ela começa a descobrir um valor que não se mede em dinheiro, uma alegria que não depende de curtida, uma paz que não vem de remédio, mas de coerência com aquilo que acredita. Não é mágico, não é fácil, não é rápido — mas é real.

As bem-aventuranças, nesse contexto, são quase um protesto contra o jeito que o mundo anda. Bem-aventurados os pobres, os mansos, os que choram, os perseguidos, os que têm fome e sede de justiça, os que promovem a paz.

Em bom português: bem-aventurados os que não topam vender a alma em troca de aplausos. Os que aceitam a própria fragilidade, que cuidam dos outros, que não pisam em ninguém pra subir, que querem justiça mais do que querem status.

Não é uma fuga da realidade. Ao contrário: é encarar a realidade de frente, sem anestesia, e escolher outro caminho. Nadar contra a correnteza não significa viver num conto de fadas, mas decidir, dia após dia, que a vida não vai ser guiada apenas pelo ter.

Significa desligar o celular às vezes, dizer “chega” pra algumas exigências absurdas, procurar ajuda quando necessário, se cercar de gente que também quer viver com mais verdade.

No fim das contas, a grande virada é essa: lembrar que a gente tem o direito de ser mais do que uma máquina de produzir e consumir. Que a nossa vida vale mais que o nosso currículo. Que o nosso rosto, com todas as marcas, vale mais que nossas postagens. Que Deus, a fé, o amor, a justiça, a dignidade valem mais que qualquer saldo bancário.

Viver assim, hoje, é quase um ato revolucionário — e talvez seja exatamente disso que o mundo está precisando.

Paulo Lemos é advogado criminalista e humanista.




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