Gonçalo Antunes de Barros Neto
De repente, uma filosofia nascida nas ágoras helenísticas e amadurecida no Império Romano reaparece nas timelines, nos podcasts e nos corredores corporativos. O estoicismo está em evidência não só por modismo, mas porque oferece um vocabulário simples para um tempo complexo: distinguir o que depende de nós do que não depende; cultivar virtudes como justiça, coragem e temperança; treinar a mente para reagir melhor do que a realidade permite. Em meio a crises econômicas, sobrecarga informacional e ansiedade coletiva, essa promessa de autonomia psíquica soa como raro bem público.
Há, primeiro, um motor psicológico. A terapia cognitivo-comportamental, base de muitos tratamentos modernos, reconhece raízes estoicas: os sofrimentos derivam menos dos fatos e mais dos juízos que todos emitem sobre eles. A tradução prática disso — observar pensamentos, testar crenças, escolher respostas — tornou-se linguagem comum em aplicativos de saúde mental, rotinas de “journaling” e exercícios de respiração. O estoicismo prospera porque fornece uma ética para esses hábitos: não é só controlar o impulso, é orientar a vida por princípios.
O segundo motor é sociotécnico. Redes sociais premiam reatividade; a cada notificação, uma faísca. O estoicismo responde com um freio racional: pausar, medir, deliberar. Curiosamente, essa contracorrente se encaixa no ritmo digital: micro práticas diárias — uma meditação breve ao amanhecer, uma revisão noturna de ações e omissões, a preparação para contratempos (“premeditação dos males”) — cabem em agendas saturadas. Em vez de exigir retiros ou rupturas, a filosofia propõe ajustes incrementais, repetíveis e compartilháveis. É “design de hábitos” com alma.
Há também um motor cultural. A geração que entrou no mercado de trabalho na última década viveu pandemia, instabilidade e o culto ao desempenho permanente. Nesse cenário, o estoicismo oferece uma alternativa à dupla tóxica “hiperprodutividade + autoindulgência”: responsabilidade sem martírio, disciplina sem cinismo. Não surpreende que atletas e executivos o citem como antídoto para decisões sob pressão. A máxima de focar no controle interno — caráter, esforço, propósito — funciona seja no vestiário, seja no conselho de administração.
O quarto motor é econômico. Editoras descobriram um filão de “clássicos comentados” e guias práticos; criadores de conteúdo empacotam cartas de Sêneca em newsletters; empresas terceirizam “cultura organizacional” em workshops de virtudes. Essa indústria tem méritos — democratiza acesso —, mas também riscos: transformar filosofia em “life hacks” desidratados. O brilho contemporâneo do estoicismo depende de manter o elo entre prática e teoria, evitando que frases de efeito substituam a formação moral que os antigos exigiam.
Importa, ainda, uma correção: estar sereno não é ser indiferente. Os estóicos eram cosmopolitas; defendiam a participação na pólis e o cuidado com os outros. A serenidade nasce do alinhamento entre valores e ação, não da anestesia emocional. Confundir estoicismo com supressão de sentimentos gera a caricatura do “estoico de mármore” — figura útil à estética de produtividade, mas estranha ao projeto de vida boa. O reconhecimento adequado das emoções, sua educação e direcionamento, é parte do caminho, não um desvio.
No Brasil, o interesse cresce também porque a linguagem estoica conversa com desafios cotidianos: lidar com serviços públicos ineficientes sem resignação, suportar volatilidade econômica com planejamento, moderar o debate público sem abdicar de convicções. A ética da responsabilidade pessoal, somada à busca de justiça e serviço comunitário, oferece uma régua de comportamento menos suscetível ao humor das redes ou do ciclo eleitoral.
Por que o estoicismo está em evidência? Porque ele traduz, com surpreendente clareza, a pergunta central do nosso tempo: como manter o eixo quando o mundo gira depressa demais? Ao lembrar que a liberdade começa no que pensamos e fazemos a cada dia, essa filosofia antiga volta a ser notícia — não por nostalgia, mas por utilidade. Entre o barulho e a pressa, ela oferece algo escandalosamente contracultural: a paciência de construir uma vida íntegra, um ato de cada vez.
É por aí...
Gonçalo Antunes de Barros Neto (Saíto) é professor de Filosofia e Direito e mestre em Sociologia (UFMT).


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