• Cuiabá, 10 de Setembro - 2025 00:00:00

A estratégia russa à luz da história


Paulo Kramer 

PRECISO PARAR com essa mania de fazer previsões. Minha última incursão futurológica redundou em deslumbrante fracasso! Quando redigi artigo recente, sobre os "destinos cruzados" de Ucrânia e Taiwan, algum diabinho me 'soprou' a sugestão de concluir o texto com as seguintes palavras: "Na minha opinião pessoal, a tendência da crise ucraniana será desescalar na direção de algum tipo de toma-lá-dá-cá, com Putin desistindo da invasão, em troca da neutralização militar da Ucrânia ('finalização') . . ." Em poucas palavras, minha expectativa era que o Kremlin obtivesse 'na manhã', sem disparar um tiro, somente pela via da intimidação psicológica, todas as concessões exigidas dos ucranianos, nas barbas de um Ocidente perplexo e inerte.

Dias depois, a Ucrânia era invadida. De pouco ou nenhum consolo me serviu a recordação de que, uma geração atrás, a fina flor da sovietologia ocidental, Henry Kissinger inclusive, foi surpreendida com a súbita queda do Muro de Berlim e o rápido desmoronamento da URSS. O que me veio à memória foi o bem-humorado conselho do saudoso Marco Maciel: "Nunca faça previsões sobre o futuro. Quando muito, limite-se a prever o passado. É mais seguro!..." Decidido a pôr em prática esse ensinamento, no presente artigo dedico-me a lançar luz sobre a longa história do expansionismo russo, de modo a reconstituir, em grandes linhas, o 'arco geopolítico' que desemboca no atual conflito na Europa oriental.

Durante muito tempo, líderes políticos, religiosos e intelectuais da Rússia czarista advogaram uma missão excepcional para o país. A "Terceira Roma", herdeira do Império Bizantino, estaria destinada a conquistar o mundo, levando uma potente "Palavra Nova" a todos os quadrantes da Terra, um destino civilizador impulsionado por meios pacíficos ou não. Pelos três séculos que se seguiram às conquistas militares do czar Pedro, o Grande (1672/1725), fundador da dinastia Romanov, a Rússia expandiu seu território a um ritmo médio de 80 quilômetros quadrados por dia! Mesmo assim, o país chegou às vésperas da Revolução Bolchevique (1917) arrastando sérios déficits socioeconômicos.

No começo do século XX, a Rússia era a quinta maior potência industrial, celeiro agrícola da Europa, mas seu PIB per capita correspondia a somente 20% do britânico e a 40% do alemão. A expectativa de vida russa era então de apenas 30 anos (a mesma da China imperial e bem inferior à da Grã-Bretanha -- 53 anos --, do Japão -- 51 -- e da Alemanha -- 49. Com 33% de sua população adulta alfabetizada, o nível educacional da Rússia pré-revolucionária se comparava ao dos britânicos no século XVIII. Sob o comunismo, os diferenciais de bem-estar individual, em confronto com o Ocidente, continuaram elevados, e o desconforto que isso provocava no seio da elite soviética cristalizou a dicotomia entre grandes ambições geopolíticas, de um lado, e insuficientes capacidades para satisfazê-las, de outro, como aponta o historiador Stephen Kotkin, docente da Universidade de Princeton, pesquisador da Hoover Institution -- think tank vinculado à Universidade de Stanford -- e autor de monumental biografia de Stálin. Assim, a Rússia alternou momentos grandiosos com períodos de declínio nas relações internacionais.

Na alvorada do século XVIII, o já referido Pedro, o Grande, derrotou os suecos na Batalha de Poltava (1709), conquistando-lhes o território onde ergueria a nova capital do império, São Petersburgo -- depois Petrogrado, mais tarde Leningrado e, novamente, São Petersburgo --, estratégico porto que não congela no inverno, graças à Corrente do Golfo, e projetou o poderio russo na Europa do Báltico. O czar Alexandre I, auxiliado pelo "General Inverno", venceu Napoleão Bonaparte, credenciando o Império Russo ao condomínio -- também integrado pela Áustria, a Grã-Bretanha, a Prússia e a França pós-revolucionária -- que redesenharia a Europa oitocentista e lhe traria uma Paz de Cem Anos até a eclosão da Primeira Guerra Mundial. E, ao fim da Segunda, Stalin estabeleceu um império-satélite na Europa do Leste.

De outra parte, os russos foram derrotados pelos ingleses e franceses na Guerra da Crimeia (1853/1856), derrota que precipitou uma crise doméstica que, por sua vez, conduziu à emancipação dos servos (1861). Foram depois vencidos pelos japoneses em 1904/1905, até que, ao longo da Primeira Guerra, o colapso do czarismo abriu caminho à vitória da revolução liderada por Lênin e Trótski. Por último, mas não em último, na última década do século passado, o comunismo soviético virou pó, colocando um ponto final na Guerra Fria, ela, sim, sem o disparo de um único tiro. Vladimir Putin, o antigo espião da KGB, deplora o fim da URSS como a maior catástrofe geopolítica do século passado.

Claro está que ele lamenta não o colapso de uma ideologia caduca, mas a perda de territórios maiores que a União Europeia ou a Índia. Por isso, desde que chegou ao poder há mais de 20 anos, ele se dedica ao objetivo estratégico de reconstituir a esfera de influência soviética, empurrando para Oeste as fronteiras da Otan, até os limites vigentes durante a Guerra Fria, e recriando uma vasta zona-tampão de modo a proteger o território russo -- facilmente penetrável graças à imensa planura das estepes -- da longa história das invasões vindas do Ocidente. Tudo isso sob a inspiração de um Eurasianismo recauchutado. Até agora, essa estratégia tem dado certo. Em 1999/2000, a Rússia bombardeou a Chechênia até a submissão. Em 2008, subtraiu à Geórgia, terra natal de Stálin e antiga república-satélite, os Estados-títeres da Abkazia e da Ossetia Meridional. Em 2014, reagindo ao movimento popular ucraniano que derrubara um presidente pró-Rússia, Putin anexou a Península da Crimeia. No ano seguinte, na Síria, o Kremlin solenemente desconsiderou a "linha na areia' traçada por uma vacilante administração Barack Obama, colocando sua aviação militar à disposição da tirania de Bashar al-Assad. Sem dúvida estimulado por esses sucessos, Putin agora se volta conta a Ucrânia, a pretexto de 'proteger' as populações de etnia russa do Leste do país (região do Donbas), produzindo nova fornada de repúblicas-fantoches: Donetsk e Luhansk.

O regime russo não admite uma Ucrânia soberanamente decidida a a se filiar à Organização do Tratado do Atlântico Norte e à União Europeia. A Rússia de Putin simplesmente rechaça a clara opção da maioria dos ucranianos pelos valores ocidentais da liberdade, dos direitos humanos e do governo limitado pelas leis, contra um modelo de civilização centralizadora, despótica e que exalta o poder do Estado sobre os interesses da sociedade civil.

Agora, contudo, o Kremlin se defronta com uma inédita resposta unificada do Ocidente, que está fornecendo armamentos e assistência técnica militar à resistência ucraniana e machucando a Rússia com pesadas sanções econômico-financeiras. E o crônico desequilíbrio entre ambições geopolíticas e capacidades estratégicas para realizá-las, indicado por Kotkin, reflete-se, por inteiro, na vulnerabilidade de uma grande potência militar, todavia às voltas com as limitações típicas de país exportador de commodities (sobretudo petróleo e gás). Essa 'inconsistência de status' repercute na psique histórica de Putin e do seu círculo de poder como um gigantesco ressentimento cujas irrupções periódicas tornam o ambiente internacional imprevisível e perigoso. O que fazer com a Rússia?...

 

Paulo Kramer é cientista político e especialista da Fundação da Liberdade Econômica.




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