Eduardo Mahon
O que está em jogo na polêmica atual entre o Governo de MT e o Tribunal de Contas é uma discussão juridicamente superada nos tribunais superiores: trata-se de verificar que interesse é prevalente, se o privado em conservar o sigilo fiscal de empresas ou o público em proceder às auditorias sobre a arrecadação estadual.
Desse embate, é preciso posição principiológica, com o perdão do juridiquês ostensivo. Por princípio, sou favorável à transparência. Na República, ninguém é intocável, insuscetível de fiscalização. Qualquer empresa que tenha relação com o Estado, direta ou indireta, sobretudo as beneficiárias de recursos públicos ou, de outro lado, de isenções fiscais e incentivos, devem sim deixar suas contas e seus balanços disponíveis à fiscalização pública, ainda que conservem o sigilo constitucional quanto a terceiros. Não há aí nenhuma antinomia. Se nem o Governador do Estado tem o holerite livre da consulta pública, com muito mais razão nenhuma empresa deverá se esconder da fiscalização, sobretudo as que deixam de arrecadar bilhões de reais.
O Supremo Tribunal Federal posicionava-se a favor da inviolabilidade bancária e fiscal, com arrimo no art. 5º, X da Constituição da República. Diante da realidade dinâmica de um país onde a fraude fiscal é quase uma regra, passou a julgar reiteradamente que os dados bancários e fiscais são acessíveis não só aos Tribunais de Contas, como também ao fisco federal e estadual. Os julgamentos do MS 21729 e das ADI’s 2361 e 2444 serviram de base para que o famoso MS 33.340 colocasse um fim na discussão: havendo interesse público envolvido, os dados bancários de empresas deveriam ser transferidos com as reservas de praxe para que o TCU pudesse cruzar dados a fim de concluir auditorias sobre empréstimos, incentivos, isenções etc. Ademais, aqui mesmo nessas terras mato-grossenses, vigora a Resolução 29/2016 do TCE-MT pela qual determina a gestores públicos o acesso aos dados bancários de órgãos e entidades públicas. Até aqui, não houve nenhuma gritaria política ou resistência jurídica.
É que os tribunais de contas ultrapassaram o mero controle formal, limitando-se a verificar balanços. Hoje em dia, conforme entendimento acertado do STF, vão além. Controlam a legitimidade, a economicidade e a eficiência do gasto público. Isso significa que podem (e devem) analisar o mérito de políticas públicas sob a lupa dos princípios do art. 37 da Constituição: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Com as leis 12.527/2011, 9.790/99 e 9.637/98, os servidores públicos, as organizações sociais e as sociedades civis de interesse público devem disponibilizar seus rendimentos, sem qualquer prejuízo para o sigilo constitucional.
Cuida-se de flexibilização em favor do interesse público. A transferência de dados bancários ao Fisco já foi amplamente discutida no Supremo Tribunal Federal que chegou à declaração de constitucionalidade da Lei Complementar 105/2001, por meio do julgamento do RE 601.314 e ADI 2.859. Pode sim haver auditoria com base nos dados sigilosos transferidos, desde que se conserve o sigilo para terceiros. Até em termos penais, inclusive, de acordo com o Inq 2245/STF e dos Resp 1060976/STJ e RO 31362/STJ.
Não é nada pessoal e nenhuma invenção maligna ou política do Tribunal de Contas de Mato Grosso. A Resolução 006/2016 da ATRICON que aprova as diretrizes de controle de receita e renúncia de receita já prevê a transferência de dados fiscais aos tribunais de contas respectivos. “Os Tribunais de Contas do Brasil comprometem-se a fiscalizar a receita e as renúncias de receita públicas concedidas pelos jurisdicionados, por meio de processos de auditorias operacionais, financeiras e de conformidade, dentre outros instrumentos de fiscalização”.
Com quais objetivos?, pode se perguntar. A própria normativa responde. Selecionei as mais relevantes: 1) se o projeto de lei orçamentária é acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito sobre as receitas e despesas, decorrentes de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia; 2) se o crédito tributário é regularmente constituído pelo lançamento, formalizado tempestivamente e com a observância dos requisitos legais; 3) se a concessão ou ampliação de incentivos ou benefícios de natureza tributária dos quais decorram renúncia de receita cumpre os seguintes requisitos: a) estar acompanhada da estimativa do impacto orçamentário-financeiro; b) atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias; c) atender a pelo menos uma das seguintes condições: demonstrar que a renúncia de receita foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária; ou implementar medidas de compensação de renúncia de receita por meio de aumento de tributos.
Falando agora o português claro: é preciso saber se há fraude na arrecadação. Simples assim. Só é possível saber cruzando dados empresa por empresa, uma tarefa da Secretaria de Fazenda que está submetida à fiscalização do Tribunal de Contas. É missão institucional do TCE fiscalizar a cobrança tributária, apurando eventuais falhas. São bilhões e bilhões exportados, livres de impostos. O TCE quer saber – a sociedade também quer – se a SEFAZ tem um controle rigoroso se, de fato, o produto é realmente exportado ou se fica no mercado interno. Qual o problema? Rompe o sigilo fiscal das empresas multimilionárias? De forma alguma. Haverá simplesmente a transferência de dados já prevista em lei. É preciso ter muito claro que o TCE-MT não executa ninguém, não cobra empresas, não interfere na gestão privada, mas pode e deve aplicar o torniquete nos órgãos de fiscalização estadual para apurar se o laço está frouxo demais, justamente quando o Estado reclama tanto de falta de dinheiro.
Eduardo Mahon é advogado.
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