Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) trouxe à tona no Recurso Especial nº 2151939/RJ (2024/0220696-4) discussão sobre a relação entre o direito real de habitação e os direitos hereditários, em especial, à luz do que estabelece o artigo 1.831, do Código Civil, e a Lei nº 9.278/96, conhecida como Lei da União Estável.
Tal decisão enaltece a importância da proteção ao direito de habitação, especialmente para aqueles que, muitas vezes, são deixados à margem em situações de sucessão, e firma a exceção da regra de proteção quando o imóvel for único e o cônjuge sobrevivente possuir recursos financeiros suficientes para assegurar subsistência e moradia dignas.
O artigo 1.831, do Código Civil, assegura ao cônjuge sobrevivente o direito real de habitação sobre o imóvel que servia de residência da família, independentemente da partilha e o regime de casamento com o falecido, protegendo o cônjuge sobrevivente e garantindo a continuidade de sua moradia. Por outro lado, a Lei nº 9.278/96 também assegura direitos semelhantes ao companheiro, estabelecendo um marco importante na proteção das relações familiares, notadamente no âmbito das uniões estáveis. Essa proteção tem amparo enquanto o convivente viver ou não constituir nova união ou casamento.
A decisão do STJ enfrenta esses temas a partir de um caso concreto e com uma abordagem inovadora, reconhecendo que o direito real de habitação não é absoluto e deve ser relativizado em favor dos direitos sucessórios. À unanimidade, a Terceira Turma afirmou que os direitos dos herdeiros se sobrepõem à proteção ao cônjuge sobrevivente para fruição do lar familiar, tendo em vista que ficou comprovado que este último possuía recursos financeiros suficientes para assegurar a sua subsistência e moradia e o imóvel em questão era único.
Tal precedente é extremamente significativo. Primeiro, reforça uma interpretação mais humanizada do direito, não se limitando a uma análise meramente obrigacional. A decisão demonstra que o STJ está atento às complexidades da vida familiar contemporânea, onde as dinâmicas de casamentos, uniões estáveis e relações afetivas se entrelaçam.
Além disso, a decisão estabelece um precedente que pode ser aplicado em casos futuros, contribuindo para a uniformização da jurisprudência sobre o tema. Em um contexto em que a insegurança jurídica pode ocasionar disputas prolongadas e desgastantes, como inclusive foi o caso concreto uma vez que a ação de inventário se iniciou em 2005 e o recurso para a instância superior foi interposto quase 18 anos depois (em 2023), a clareza trazida por essa decisão representa um avanço significativo na proteção dos direitos dos herdeiros.
Por fim, é crucial destacar que a decisão do STJ não implica em desvalorização do direito real de habitação do cônjuge/companheiro. Ao contrário, busca equilibrar interesses, preservando a função social da propriedade e a proteção à dignidade da pessoa humana. Assim, a decisão deve ser vista como uma oportunidade de repensar as relações familiares à luz do direito sucessório, priorizando o respeito e a proteção dos laços que unem as pessoas.
O precedente é um marco na jurisprudência brasileira, evidenciando a complexidade dos problemas jurídicos que circundam as relações familiares e a necessidade de reflexão contínua sobre os institutos do Direito de Família e Sucessões. Ao priorizar o direito dos herdeiros, o STJ reforça que a interpretação da lei deve se alinhar com a dinâmica das relações humanas. A proteção da habitação do cônjuge sobrevivente, embora relevante, deve ceder espaço às reivindicações dos herdeiros nas discussões sobre sucessão, e essa decisão representa um passo importante nessa direção.
Carolina Rocha Rodrigues e Lívia Ribeiro Alves dos Santos são advogadas associadas da área de Família e Sucessões do escritório Suzana Cremasco Advocacia.
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