Há um risco de adotarmos, na atuação como intelectuais ou como políticos, visões maniqueístas, de acordo com as quais qualquer disputa acerca de questões teóricas ou práticas é travada entre os defensores do bem e os partidários do mal.
O maniqueísmo ideológico justificou atentados políticos, golpes ou revoluções, guerras civis, conflitos militares entre nações e, até mesmo, genocídios. Mesmo ao rejeitar posturas maniqueístas, devemos reconhecer que as diferentes posições doutrinárias são motivadas por duas concepções distintas, que acarretam práticas morais, econômicas e políticas contrárias, motivadas por percepções antagônicas em relação à natureza humana.
Ao refletir sobre os princípios normativos apreendidos da Lei Natural, o pensamento filosófico clássico, desde Platão (227-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), passando por Santo Agostinho (354-430) e Santo Tomás de Aquino, até chegar aos pensadores conservadores em nossos dias, constatou a existência de uma natureza humana uniforme.
Em maior ou menor grau, as ideológicas posturas da atualidade foram influenciadas tanto pelo racionalismo dos iluministas franceses quanto pelo sentimentalismo romântico de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), sendo que este último foi o propositor de uma noção maleável e voluntarista de natureza humana, que é a base teórica dos excessos dos revolucionários franceses de 1789, dos diferentes tipos de socialistas e, até mesmo, dos atuais propositores das falaciosas noções de politicamente correto, de ecologismo e de ideologia de gênero.
No contexto da Revolução Francesa de 1789, temos uma ruptura na tradição liberal entre a concepção revolucionária, democratista, voluntarista e racionalista proposta por Thomas Paine (1737-1809), de um lado, e, de outro, a posição conservadora, organicista, tradicionalista e cética de Edmund Burke (1729-1797).
A questão foi discutida com propriedade no livro O Grande Debate: Edmund Burke, Thomas Paine e o Nascimento da Direita e da Esquerda, por Yuval Levin, que enfatizou as diferenças entre o conservadorismo direitista burkeano e o progressismo esquerdista paineano, sendo este último muito próximo a noções anteriormente defendidas tanto por Jean-Jacques Rousseau quanto pela maioria dos iluministas franceses. Em seu livro Democracia e Liderança, de 1924, foram analisadas por Irving Babbitt (1865-1933) as diferenças entre a "imaginação idílica" rousseauniana e a "imaginação moral" burkeana.
Em linha de raciocínio semelhante, no livro Conflitos de Visões: Origens Ideológicas das Lutas Políticas, o economista Thomas Sowell enfatizou que as atuais disputas no campo político são decorrentes da adoção de percepções distintas acerca da natureza humana.
De acordo com esse pensador, temos um conflito que contrapõe, de um lado, a "visão restrita", tal como apresentada pelo moralista e economista Adam Smith (1723-1790), que, de modo semelhante ao pensamento burkeano, defende que as ações morais, políticas e econômicas dos indivíduos devem ser restringidas pelos ditames da natureza humana, marcada pela imperfectibilidade, e, de outro lado, a "visão irrestrita", que foi proposta, dentre outros, pelo anarquista e racionalista William Godwin (1756-1836), seguidor do democratismo rousseaniano, que adotou noções utópicas e revolucionárias.
Podemos afirmar que, em última instância, as críticas às diferentes concepções ideológicas racionalistas ou sentimentalistas apresentadas por conservadores como Michael Oakeshott (1901-1990), Russell Kirk (1918-1994) e Sir Roger Scruton (1944-2020), bem como a defesa do tradicionalismo, do organicismo e do ceticismo, estão fundadas em uma visão restrita, decorrente do reconhecimento dos limites inerentes ao fato da natureza humana ser caracterizada pela imperfectibilidade.
De modo semelhante, tanto as críticas ao planejamento econômico proposto por socialistas ou intervencionistas quanto a defesa do livre mercado encontradas nos escritos de Ludwig von Mises (1881-1973) e de F. A. Hayek (1899-1992) são oriundas dessa visão restrita.
Alex Catharino é Historiador, Pesquisador da Fundação da Liberdade Econômica.
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