• Cuiabá, 21 de Novembro - 00:00:00

Quase Tudo Embaçado

Outro dia, bem cedinho, ao acordar-se, Luís abriu a janela do seu quarto, no nono andar de um prédio de esquina. Pela vez primeira, estranhamente, tudo estava embaçado. Levou ao rosto a toalha que trazia pendurado a um dos ombros, esfregou-a sobre os olhos. Nada adiantou.

Continuava sem visualizar coisa alguma do lado de fora, ainda que tivesse a clareza de movimentação dos carros e de pessoas. Sentiu-se incomodado, sem estar preocupado, pois inexistia algo de errado com suas vistas. Afinal, enxergava tudo no interior do apartamento, até mesmo o mais sutil dos movimentos de três ou quaro formigas que se esbaldavam de meia dúzia de grãos de açúcar presos ao fundo de uma das xícaras deixadas na pia, cuja torneira, um tanto gasta, já não mais fechava direito, assim gotas d’água caiam sem parar sobre os talheres usados no jantar da noite passada.

Pensativo, deixou-se escorregar o próprio corpo sobre o sofá. Esparramou-se, enquanto seus olhos se fixaram ao lustre de três pontas, com uma lâmpada em cada uma delas, pendurado ao teto, por uma corrente prateada, com um delicado desenho. Desenho que tinha sido copiado, sem tanta precisão, de um aposento de um dos palácios medievais, cujas visitas foram interrompidas por conta do lockdown do país. Palácio que chegou a ser transformado em prisão, no segundo quartel do século XX, onde foram levados dezenas, talvez centenas dos que se opunham ao regime instalado, o qual se valia da polícia política para perseguir, prender, torturar e, não raramente, matar.

Crimes escondidos, escamoteados por falsos laudos, falsas perícias, por notícias mentirosas maciçamente publicadas. O véu que os encobria, por fim, foi retirado, e, a realidade que se viu foi bem outra, bastante diferente da contada e propalada por agentes do regime. Sem saída, os “antigos” algozes tentaram-se passar por heróis, e se valerem do contorcismo retórico para substituírem os fatos pelas versões (as suas, claro!) e o negacionismo para distorcer as verdades das ciências. Ressuscitaram o lysenkoismo.

O céu se fez carrancudo. Desapareceu o arco-íris, e, com este desaparecimento, sumiu a crença à maior das promessas de Deus a humanidade. A esperança havida quase se esvaiu pelas ondas bravias das águas desgovernadas pelas Fak News, assemelhadas com a que se veem agora pelas correntezas violentas da pandemia do coronavírus, acentuadas pelos redemoinhos irracionais contra a ciência, a tudo que é científico, enquanto se realçam as sandices e a garoa do curandeirismo, mesmo que todas as associações e instituições de saúde continuem se posicionando do lado oposto, desacompanhados dos conselhos, transformados em agremiações partidárias.

Em meio a tudo isso, o crescente número de infectados e a quantidade cada vez maior de mortes. Mortes que abrem feridas nos seios das famílias. Feridas jamais cicatrizadas. Não as cicatrizam porque inexiste como parar a dor da perda (nem o tempo) que, tal como a lava do vulcão, destrói, machuca e enraíza. Enraizada. Mesmo a contragosto da insensibilidade e da inadmissibilidade de culpas, cujas ondas se formam pelo vento do panfletarismo, o qual tenta abafar o eco da verdade científica e a dos fatos.

Há uma inversão das coisas. Dias sem o clarão do sol, tornam-se noites, e estas, em razão do escuro da cegueira do negacionismo, se dão sem a claridade da lua. Luís se encontrava à janela. Tinha os olhos fixos ao vazio do lado de fora. Nada enxergava. Tudo continuava turvo. Muito embaçado. Provisória, a cegueira se tornava permanente. Ele, porém, não estava nem aí. Não ligava. Satisfazia-se tão somente com o que enxergava, ainda que o enxergado nada tivesse com a verdade, e não passava de sombra, que havia penetrado pelas frestas de portas e das persianas, e invadido o ambiente, inundando-o pelo ar da insensibilidade, da insensatez e do estado alheio ao que acontecia lá fora. É isto.

 

Lourembergue Alves é professor universitário e analista político.   



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