Passado a má digestão. Fim do rebuliço no estômago. Medonho e de mal-estar. Já sem o gosto salgado na boca. Era o término da ressaca, depois de noites de farra, muita bebedeira, e insônia amargada por uma decisão jurídica deseducadora, desinformadora. Refeito, sem deixar de estar insatisfeito, Luís caminhava, seguia por onde costumava seguir, não despreocupado, pois, a qualquer instante, os ponteiros do relógio indicaria o horário de se recolher. E se recolheria.
Evitaria, assim, a ser multado. Multa, cujo valor cobrado lhe faria bastante falta, como, aliás, falta faria para qualquer outro, além do que precisava para quitar a dívida gerada pela internação da irmã, vitima de Covid-19, e que mais tarde veio a falecer. Perda doída. Doía-lhe o coração, e estraçalhava tudo por dentro. Sentiu-se muito fragilizado, cansado e tristonho, sem ter que jogar a toalha, ainda que, em vários momentos, se sentisse vontade de fazê-lo. Antes, porém, preferiu outra coisa, o de ler os nomes dos mortos pela Covid-19.
Seu estômago embrulhava todo ao deparar-se com eles, e seus olhos enchiam de água, a qual escorria pelo rosto, formando corredores de rugas, marcas de uma situação estranha, amedrontadora, com a propagação do vírus. Crescia a quantidade de infectados, superlotaram os hospitais, com a fila de espera cada vez maior, e aumentavam-se as mortes. Mesmo assim, nenhum plano, planejamento algum tanto no combate como na vacinação. Diferentemente, de vários outros países.
Outro dia, aliás, foi noticiado de que o presidente estadunidense anuncia vacina para todos os adultos a partir de 1º. de maio, Por aqui, ao contrário, municípios interromperam a vacinação. Foram obrigados a fazê-lo. Falta vacina. Falta que levou governadores a se reunirem para pressionar o Ministério da Saúde, e até a pensarem em comprar eles mesmos a vacina. Igual romaria fazem os prefeitos que, em consórcio, falam em adquirir o produto, tão necessário para que se tenha mais esperança, e com esta vencer a queda-de-braço com o Covid-19.
Covid-19 que faz do corpo humano sua morada, sua hospedaria, cuja realimentação se dá com novas sepas, novas metamorfoses, o que o faz mais e mais letal. Antes, porém, viola os pulmões, deflora o psicológico e suga o que resta de forças em suas vítimas. Processo cada vez mais rápido. Bem mais que o da primeira onda. Onda que também levou de roldão vidas. Ceifadas, ficaram a saudade e as lembranças. Lembranças e as saudades de quem nunca mais irão voltar. Nunca, cuja dor é imensa, imensurável, dilacera como a soda, com sua ação corrosiva destruía os tecidos, causando queimaduras graves, severas e podendo causar perfurações e danos às vias respiratórias.
Era o que Luís sentia exatamente no instante em que seus olhos percorriam a lista que estava bem a sua frente. Lista enorme, extensa por demais. Tinha os olhos embaçados. Pois na tal lista, nomes que lhe eram familiares, alguns mais, outros menos, até de velhos conhecidos, que, com ele, surfaram pelas ondas da infância e adolescência, riram e se divertiam nas dobras, sinuosas ladeiras e esquinas da cidadezinha do interior, com as águas do velho rio a beijarem-lhe os pés, e amaciarem as maçãs do rosto.
Ousaram sonhar, e sonharam, ainda que partes do sonhado fossem difíceis de ser realizadas. Mas se contentaram com o que conseguiram realizar, e o realizado foi e é de uma importância sem igual. Fizeram-nos abrir sorrisos, tal como as pétalas que se abrem até que a flor aparece cheia de beleza e de encanto. Ainda que os pingos da chuva esbarrem na vidraça, feita de vitrine, enquanto as cortinas das lembranças vão se desfazendo, e deixam vir à luz todas as cenas, construídas pela tinta do pretérito, com o adorno do vivido, jamais esquecido.
Luís suspirava. Sentia seu respirar fora do compasso, quase a falhar. Deixou, então, de ler os nomes de seus amigos, vítimas da Covid-19. Afastou-se, embora sem forças, de onde estava, e, impotente, deixou-se levar pelo liquido turvo da tristeza, enquanto um gosto estranho lhe invadia o céu da boca. Tudo nele era saudade de cenas específicas do álbum da vida. É isto.
Lourembergue Alves é professor universitário e analista político.
Ainda não há comentários.