A autodeclaração nos processos de Regularização Fundiária em áreas da União de até 04 módulos fiscais foi instituída pelo Programa Terra legal quando de sua criação em 2009 pela Lei 11.952, em caráter extraordinário, mas com a Lei nº 13.465/2017 tornou-se uma política permanente de regularização fundiária. Esse limite foi ampliado de 04 para 15 módulos fiscais pelo texto enviado da MP 910/2019, que teve seu prazo de vigência encerrado no dia 19 de maio de 2020.
Agora prevista no Projeto de Lei 2633/2020, a autodeclaração nos processos de regularização fundiária rural é tema inquietante que tem trazido embates acalorados no Congresso Nacional, porem, interessante, pois traz em si a mensagem de desburocratização e economia processual nos processos de regularização da média propriedade, que poderá ser viável, um verdadeiro avanço, contudo, para o possível sucesso desta modalidade o Estado deverá se estruturar, respaldando-se com profissionais técnicos suficientes e preparados para fiscalizar as áreas que apresentarem inconsistência ou irregularidades, que busquem a validação das informações prestadas pelo declarante através de toda uma estrutura de inteligência, integrando bases de dados das diversas instituições governamentais, de modo que qualifique a tomada de decisões e melhore o processo de regularização fundiária, oferecendo a tão alardeada segurança jurídica.
Cabe pontuar que a autodeclaração substitui a vistoria presencial que é importante instrumento de validação das informações prestadas pelo interessado e proteção de possíveis posseiros (considerando que esses imóveis serão estremados) que possam estar encravados dentro dos limites da área requerida; e ainda, para verificar o respeito a legislação ambiental, a exploração de mão de obra em condição análoga à de escravo ou mão de obra infantil e, principalmente, constatar se está presente um dos pilares da regularização fundiária desde o Brasil Colônia, a posse mansa e pacifica.
Na seara ambiental é cediço que a autodeclaração nos processos de Cadastro Ambiental Rural - CAR apresenta um baixo nível de validação das informações declaradas, frustrando as expectativas iniciais, o que pode potencializar futuros conflitos agrários.
A meta do governo federal para os 04 anos é entregar 600 mil títulos, só para assentados da reforma agrária. Meta espinhosa, considerando a complexidade do tema enfrentado tendo em vista os problemas sensíveis apresentados no campo devido a um passivo enorme de terras irregulares e a migração constante nos lotes destinados à reforma agrária.
A estrutura acima apontada (pessoal, tecnológica, etc) para validação de ato autodeclaratório, já foi prevista no Estado de Mato Grosso através do Programa Terra a Limpo, instituído pelo Decreto Estadual 1560 de 29/06/2018, revogado pelo Decreto atualmente em vigência 55/2019 de 14/03/2019, que propõe reduzir os conflitos de terra e os desmatamentos ilegais, e fortalecer a agricultura familiar nos municípios da Amazônia Mato-grossense, mediante a regularização fundiária de assentamentos e glebas públicas, estaduais e federais, com meta inicial de titulação de 65.000 (sessenta e cinco mil) famílias de agricultores, com despesas para seu funcionamento e implementação das suas ações cobertas por recursos do Fundo Amazônia através do Banco Nacional do Desenvolvimento – BNDES, que atua apenas como um operador do recurso, conforme Contrato de Colaboração não reembolsável nº 18.2.167.1, no valor de R$72,9 milhões, aprovado em 02.04.2018 e contrato em 26.06.2018, com total de desembolso já realizado de R$ 6.320.250,00 na data de 05/07/2018, perfazendo 9% (nove) por cento o valor total desembolsado em relação ao valor do apoio do Fundo Amazônia. Importante pontuar que excluindo a meta prevista em 2018 de entrega de 65 mil títulos definitivos através do Programa Terra a Limpo em 87 municípios, Mato Grosso não apresentou meta de regularização.
Contudo, recentemente o Estado de Mato Grosso alterou e acrescentou dispositivos à Lei 3922/1977 (Lei de Terras), pela Lei 10863/2019, que trata da Regularização Fundiária em áreas do Estado de Mato Grosso, e não previu a possibilidade de ato autodeclaratorio, permanecendo assim, obrigatório a realização de vistoria técnica “in loco” (presencial) e/ou visita ocupacional realizada pelas autoridades do Estado no imóvel objeto do pedido de regularização fundiária.
Percebe-se que houve alterações profundas no Código de Terras do Estado de Mato Grosso, consoante a Lei 10.863/2019, 10.994/2019 e Decreto 146/2019, dentre os quais destacamos: A não exigência de morada habitual e a possibilidade de regularização de imóveis sem a pratica de cultura efetiva e de exploração, direta ou indireta, pelo ocupante e sua família, ou seja, imóveis poderão ser regularizados mesmo tendo 100% de floresta (vegetação nativa - ), sem nenhuma atividade econômica.
Urge pontuar que essa nova forma de regularização fundiária sem exigência de morada habitual e cultura efetiva não observa o disposto no art. 7 º da Lei 3922/77, que prevê: “A alienação de terras publicas atenderá ao interesse coletivo e objetivará o desenvolvimento econômico e social”, uma vez que não atende a nenhum destes requisitos, igualmente, não cumpre a função social da propriedade. Ademais, é certo que essa nova possibilidade de regularização poderá dificultar o trabalho de verificação da autodeclaração (acaso implantado no Estado) mesmo com a estrutura descrita alhures devidamente posta.(quem realmente tem a posse da floresta)
Tais temas devem ser colocados em discussão no contexto estadual uma vez que as normas federais servem de referência aos Estados quando da revisão de suas normas, neste contexto, o Estado de Mato Grosso apresentou recentemente Projeto de Lei Complementar 17/2020 (retirado) que permite o Cadastro Ambiental Rural (CAR) de propriedades e posses rurais sobrepostas a 13 terras indígenas (TI) pendentes de homologação, de forma pressurosa, medida vista como incentivo à invasão de terras indígenas, dando um recado que aquelas áreas inseridas dentro de reservas indígenas poderiam ser “ajeitadas”, gerando grande reação da sociedade civil organizada, uma vez que essa entende que o Estado deve possibilitar ao publico rural acesso a políticas públicas de apoio ao desenvolvimento sustentável e contribuir na criação e no desenvolvimento de modelos de produção sustentável na região.
Sobre o assunto indigenista, analisando a Lex Mater, observa-se, inicialmente, que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são bens da União como incurso no artigo 20, inciso XI. À luz da classificação dos bens públicos proposta pela doutrina pátria e do artigo 231, § 4º da CF/88, que estabelece que “as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”, observa-se que as terras indígenas são bens públicos de uso especial. Adite-se que o artigo 231, § 2º , da Carta Política, prevê que as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, conforme pontua a Professora Ana Maria D´Ávila Lopes (https://www2.senado.leg.br).
Esse projeto que permite CAR em área indígena contraria também o disposto no programa terra a limpo que prevê o repasse no valor total de R$ 72.900.000,00, de recursos do Fundo Amazônia através do Banco Nacional do Desenvolvimento – BNDES, ao Estado de Mato Grosso, em um prazo de 60 meses, mas que também prevê contrapartidas a serem observadas pelo Estado, dentre as quais destaco: contribuir na redução do desmatamento; contribuir na redução dos Conflitos de Terras; promover a segurança Jurídica sobre a posse.
Dito isso, o Estado de Mato Grosso deve tomar as cautelas necessárias quando da apresentação de projetos de lei no sentido de não passar mensagem à população que tudo esta permitido e será resolvido, mesmo em desacordo com as Leis e as políticas publicas de desenvolvimento sustentável.
Os sinais emitidos pelo Estado de Mato Grosso não foram positivos, devendo assim, buscar melhorar a percepção negativa gerada por essas medidas apresentadas, evitando prejuízos a toda sociedade, ao meio ambiente, ao povo indígena e aos agricultores que certamente serão afetados com retaliação internacional, conforme já noticiado nos meios de comunicação de boicote de empresas majoritariamente Europeias as exportações brasileiras e o desinvestimento como resultado provável.
Luiz Carlos Fanaia de Almeida é Advogado do INTERMAT. Membro da comissão de assuntos fundiárias da OAB MT. Pós graduado em Gestão de Cidades. Direito Agrário e Direito Ambiental.
Ainda não há comentários.