O sol já mostrava suas garras logo cedo. Tinha um brilho sem igual, quase avermelhado, refletido em toda a abóbada. Tanto que dava a impressão que a abóbada celeste era toda constituída por ondas. Ondas tão alvas quanto às águas do rio no seu nascedouro, sem os dejetos que recebem ao longo do seu percurso, deixando-as com outra coloração, turvas, ora meio esverdeadas e ora marrom, além de apresentarem um cheiro esquisito, um tanto insuportável.
O velho rio agonizava, pedia socorro, mas socorro algum aparecia, e, então, tristemente, ocorria sua lenta e demorada morte. Morte ignorada pelos transeuntes, somenos para um punhado de gente que vivia a lhe desvirginar as margens, tampouco sentida por quem, quando criança e adolescente, se serviu dele. Oh... Como se serviu! Nenhum sentimento de culpas. Nada era feito, nem mesmo o “proibido proibir”, no dizer de uma antiga canção de Caetano Veloso. Tudo era silêncio. “Silêncio a envolver em solidão/ Sombra na noite vazia e sem luar/Deixem minha alma a chorar” – cantava Claudia Barroso. Reinava o “psiu”, não para chamar alguém, mas para impor o cala boca, sem o uso do cala-boca e nem do calabouca.
Palavras escritas destas formas, porém de sentidos diferenciados, embora usadas de certo modo para igual fim, o de nada dizer a respeito de algo que se quer esconder, e esconde até a doença “das autoridades sanitárias”, como escreveu Jorge Amado em um dos trechos de “Capitães de Areia”, ou evite que se perceba que o “homem (tem) ar de louco”, a exemplo do que se pode ler em “O aspite: há um jeito pra tudo”, de Ziraldo Alves Pinto.
Somente se permitia o zum-zum-zum sobre os adversários, inimigos, cujos podres, podriqueiras e podruras jamais guardados em segredos, ainda que segredados pelas redes sociais. Aumentados, inventados, falsas e mentiras. Não importa. Importante mesmo é o desviar a atenção para longe da situação que se quer escamotear, ainda que seja impossível de encobri-la de toda e por tanto tempo. Pois, mais cedo ou mais tarde, há de aflorar.
Emergir-se-á à superfície. E aí, embora tarde, de nada valerá os esforços do batalhão do esconde-esconde, atuante para livrar a cara do malfeitor, afinal, o malfeito, por mais que se queira encobri-lo, sempre deixará rastro a descoberto. Até porque a força desse batalhão, o do esconde-esconde, já não é tão robusta quanto fora ao germinar-se, uma vez que a própria voz, que a aciona e domina, está bastante longe de produzir igual efeito, tanto que não mais comove tanta gente. Força cega a guiá-los.
Estava certíssima Clarice Lispector, em “O Lustre”, pois, “no seu quase delírio ela se obstinava em pensar: se aquele céu era uma realidade, observava, uma vez regredindo ela não saberia, no entanto, alcançar outra etapa, a anterior ao céu, a mais alta, por meio do esforço: sua força de procurar esgotar-se”.
As correntezas da obviedade são reais, duradoras e infalíveis. Destroem quaisquer colunas. Ainda mais se estas são feitas de um material fragilizado, o qual está propenso à fratura, que se dá logo no início da trinca, com consequente propagação, e nada valeria a adoção de metais de grande pureza, com alta tenacidade, uma vez que a fratura ocorrida se alastra por deformação plástica de planos de deslizamento conjugados em pura deformação por cisalhamento. Isto vale também para a coluna de retórica, barata ou não, construída com tijolos do marketing assentada por argamassa da mentira.
As águas do rio não são pacíficas, embora pareça, nem os raios solares são tão dóceis. Ondas e correntezas representam as tensões, e estas grassam no viver democrático, onde reina a pluralidade, o que rechaça a censura, o proibido. Pois no jogo, arbitrado pela democracia, humaniza o saber, afugentando a ignorância. É isto.
Lourembergue Alves é professor universitário e analista político. E-mail: lou.alves@uol.com.br.
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