Um desfile ocorrido nos últimos dias na cidade de Cuiabá-MT tem gerado repercussão nacional. Nesse evento, as crianças acolhidas em instituições de Cuiabá participaram de um desfile de moda em um shopping da capital. O que há de polêmico nisso? O fato de as crianças e adolescentes estarem disponíveis para adoção.
As reações foram imediatas. Dizem que estão entregando crianças, tal como um desfile de escravos ou uma venda de gado em leilão. As crianças e os adolescentes viraram objetos, coisas. Mostrar o rosto de crianças é um absurdo, uma mácula que jamais será esquecida e tantos outros disparates.
Não compreendem, contudo, que se trata de uma forma criativa de mostrar à sociedade que há crianças como as nossas dentro dos acolhimentos brasileiros. São crianças que sorriem, que brincam, que se emocionam e que também desfilam. Se fosse um desfile dos nossos filhos, ninguém diria nada, pois as crianças e os adultos se divertiram. Mas, no caso de Cuiabá, foi um desfile das crianças silenciosas, das crianças enjeitadas, das crianças invisíveis que sequer imaginamos que existam.
As crianças invisíveis não podem ser vistas, não podem ser visitadas em abrigos, não podem conviver socialmente, pois merecem ficar escondidas até que um dia, se chegar esse dia, possam ter uma família e se apresentarem socialmente. Somente assim poderão ter visibilidade social.
Cabe lembrar que a criança que se encontra em abrigo não praticou atos infracionais para que o seu nome e o seu rosto fiquem escondidos. Ela não é infratora (leia-se criminosa). É uma pessoa humana que possui o direito à felicidade, o direito de viver em sociedade, o direito de ser vista, o direito de encontrar uma família, o direito de contar a sua história e o direito de realizar sonhos.
O evento de Cuiabá não se trata de um caso isolado. Por todos os rincões brasileiros são realizados desfiles, piqueniques, exposições de fotos, apresentações de crianças por times de futebol etc. São inúmeras formas criativas de mostrarmos à sociedade que hoje vivem em abrigos mais de 5.000 crianças e adolescentes aptos à adoção e mais outras 40.000 crianças esperando alguma providência por parte do Poder Judiciário.
Por falar em Poder Judiciário, não se pode esquecer que esses eventos são realizados com o aval das varas da infância e da juventude, sendo fiscalizados pelo Judiciário e pelo Ministério Público. Um pretendente à adoção somente levará uma criança para casa após uma longa etapa processual, consistente em seleção do perfil, realização de cursos e acompanhamento psicossocial, objetivando sempre garantir o superior interesse da criança e do adolescente.
Parabenizo os idealizadores do desfile de Cuiabá pela iniciativa. Parabenizo pela garantia de voz e de visibilidade às nossas crianças invisíveis. Lembrem-se de que todas as vezes que inovamos, que saímos de nossa zona de conforto para buscarmos a transformação social, corremos o risco de levarmos pedradas daqueles que já nos chamaram de Santa Geni.
Fernando Moreira Freitas da Silva é doutorando em Direito pela USP. Mestre em Direito pela UEL. Professor de ECA da Escola da Magistratura de MS. Juiz de Direito de MS. Vice-presidente da Comissão de Adoção do IBDFAM.
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