Nem sempre a vitoriosa é a melhor causa. Ao longo da minha trajetória empunhei bandeiras que foram sufocadas ora pela máquina pública ora por força social ou política. Perdi incontáveis batalhas e por elas tantas vozes se levantaram contra mim num fechar contínuo de portas e até de janelas. De sobressalto em sobressalto, enfrentando ações judiciais e movimentos sociais organizados, fiquei por longo tempo baleado, mas teimando em não abaixar a cabeça nem dobrar a espinha.
Poderia enumerar muitos exemplos de minhas derrotas no jornalismo, mas não saberia citar uma reclamação sequer contra esse estado de coisas, porque não sou de reclamar; mesmo respondendo a processos nunca bati à porta do corporativismo. Suportei tudo em silêncio, como parte da arte de sobreviver.
Há alguns dias fecho as gavetas enquanto alinhavo meus derradeiros acertos administrativos para o adeus ao jornalismo. O amanhã, como todo dia seguinte, é um mar de incerteza e não poderia ser diferente. Não há como parar o implacável relógio e sem alternativa nos resta o inevitável encontro com o futuro.
O ontem no exercício da profissão é página virada que nos permite revivê-la mentalmente e, nela, é possível rememorar vitórias e derrotas, erros e acertos, decisões e incertezas.
Gleba Suiá-Missú. Fazenda do Papa. Agip. Dom Pedro Casaldáliga. Posto da Mata. Estrela do Araguaia. Funai. Ministério Público Federal. Itamar Franco, FHC. Lula. Dilma. Supremo Tribunal Federal. Terra Indígena Marãiwatsédé. Desintrusão. Tragédia social. A soma desses nomes resultou num dos capítulos mais repugnantes da ação do Estado contra humildes brasileiros de mãos calejadas nos cafundós do Araguaia, onde as rodovias federais 158 e 242 se encontram.
Durante anos cobri a ansiedade de mais de mil e cem famílias nos municípios de Alto Boa Vista, São Félix do Araguaia e Bom Jesus do Araguaia, de olho na curva da estrada, com o coração apreensivo à espera do oficial de Justiça para cumprir o mandado de desintrusão de uma área de 165.241 hectares, antropizada, em processo produtivo por mais de três décadas, com um núcleo urbano em crescimento e ocupada mansa e pacificamente, para entrega-la aos índios xavantes aldeados em regiões distantes.
Somente quem viu o sol ceder lugar ao luar para retornar na próxima madrugada. Somente quem passou horas e horas ouvindo emocionantes desabafos de gente de muitos cantos do Brasil que encontrou naquele chão a paz para criar os filhos e garantir o sustento em sua mesa. Somente quem viu em Estrela do Araguaia o borracheiro Luiz Sobrinho, ali nascido, afagar sua filha e conterrânea Cristiane Aparecida, e se deixar enrodilhar pelos netos Gabriel e Vitória – filhos de Cristiane e ambos da terceira geração de estrelenses. Somente quem testemunhou o fluminense Edivilson de Abreu Teixeira, campear seu gado na fazenda Mata Azul. Somente quem presenciou José Martins, o Zé Pretinho, e sua mulher dona Joeli, vendendo verduras na feira-livre em Alto Boa Vista. Somente quem se comoveu com as lágrimas do septuagenário Alcides Zimignani, o Gaúcho Feio, após narrar suas dificuldades numa entrevista, encostado num velho e sucateado Jeep azul, que rodava pela graça de Deus e não por sua condição mecânica. Somente quem acompanhou o drama da Gabriele, a Gabi, seu irmão Kauan e seus pais Jakeline Aparecida e Waldir de Souza – os primeiros expulsos da terra pela baioneta da soldadesca com aparato de guerra. Somente que viveu essas e tantas outras experiências pode atestar a insensatez humana, o desrespeito pátrio e a indiferença governamental e política com nossos irmãos que foram jogados na sarjeta. Suiá-Missú era uma gleba no Araguaia com 1,5 milhão de hectares em várias matrículas registradas no Cartório do Registro de Imóveis de Barra do Garças, que foi comprada em 1960 pelo empresário e colonizador Ariosto da Riva. Seis anos depois Ariosto vendeu a propriedade para a família Ometto, de Araras, no interior paulista. O líder desse clã, Hermínio Ometto, mandou abrir a Estrada da Suiá-Missú, que deu origem à BR-158 entre Nova Xavantina e Estrela do Araguaia tendo à frente o engenheiro e político João Carlos de Souza Meirelles. De Ometto, a Suiá-Missú foi parar nas mãos da Agip Petroli. Fazenda do Papa foi como ela ficou conhecida por pertencer à Agip, uma multinacional que tinha entre seus controladores o Vaticano. Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, Casaldáliga blindava o patrimônio do pontífice na região. Posto da Mata, como o nome sugere, era um posto rodeado pela floresta e em seu entorno surgiu a vila de Estrela do Araguaia, ocupando área em São Félix do Araguaia e Alto Boa Vista com as rodovias 158 e 242 ao meio. Funai e Ministério Público Federal, naquele episódio, mais uma vez repetiram sua tradição de serem ilhas autônomas no paupérrimo continente brasileiro. Itamar, FHC, Lula e Dilma dispensam comentários. O Supremo foi nanico, menor. Terra Indígena Marãiwatsédé, com 165.241 hectares. A desintrusão resultou na tragédia social silenciosa que desembocou em suicídios, esfacelamento social, degradação patrimonial, desencanto com o Brasil.
Na região, dizem que a fábrica de armas Beretta, também ligada ao Vaticano, testava armamentos em seus campos. Depois que a gleba perdeu o interesse econômico a Agip vendeu sua parte maior no rumo de Porto Alegre do Norte. Casaldáliga acomodou posseiros na área que foi entregue aos xavantes. Antes da multinacional os índios perambulavam na região, mas nunca foram aldeados ali, por mais que alguns tentem contestar essa verdade. Mesmo em se tratando de área de perambulação eles foram retirados de lá pelo empresário Ariosto da Riva, que planejou e desistiu de colonizar no Vale do Araguaia, optando pela calha do Teles Pires, onde fundou Alta Floresta, Paranaíta e Apiacás; os indígenas foram levados para suas terras de origem, também no Araguaia.
Quando não tinha mais interesse econômico na região a Agip representada por seu presidente Gabriele Cagliari, doou aos xavantes o que sobrou da Fazenda do Papa durante a ECO-92, no Rio de Janeiro. Com a doação começou o drama das famílias que viviam na área. Em 12 de dezembro de 2012 tudo chegou ao fim. A vila foi demolida e o campo desocupado. O preciosismo da lei não permitiu que as famílias fossem mantidas onde se encontravam e que Mato Grosso doasse uma área muito maior e sem antropização para abrigar mais uma terra indígena em Mato Grosso: em 2011 a Assembleia Legislativa aprovou e o governador Silval Barbosa sancionou uma lei de autoria dos deputados José Riva e Adalto de Freitas autorizando o Estado a permutar 230 mil hectares do Parque Estadual do Araguaia, nas vizinhanças da Fazenda do Papa, por ela, mas a Funai e o Ministério Público Federal refugaram.
Vazio demográfico étnico. Latifúndio improdutivo. Trava na complementação da pavimentação da BR-158. Espelho da vergonha. Cenário de humilhação de brasileiros em nome de uma estranha ocupação da terra em Mato Grosso onde tudo que mais sobra é terra sem gente. Assim é o antigo Posto da Mata na Fazenda do Papa, que é tema do meu terceiro artigo de despedida. Despedida consciente e rápida, bem diferente daquela no Araguaia, que agonizou ano após ano, mês após mês, semana após semana, dia após dia, hora após hora, minuto após minuto, segundo após segundo, até que chegou a hora. Pobre país da canalhice oficial.
Eduardo Gomes de Andrade é jornalista
eduardogomes.ega@gmail.com
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