Kaene Almeida
Entre a fé e a religiosidade tão marcantes da população cuiabana, com uma pitada das lendas e tradições antigas passadas de geração em geração, a Páscoa sempre foi vivida como um dos momentos mais sagrados e emocionantes do ano. É o momento de renovação, de esperança e da vitória da vida sobre a morte, com a ressurreição de Jesus Cristo.
Após o período de quaresma, marcado por três pilares – a oração, que fortalece a relação com Deus; o jejum, que é um gesto de penitência e domínio próprio; e a caridade, que expressa amor aos mais necessitados -, nos aproximamos do Tríduo Pascoal, marcado pelo recolhimento, pelo silêncio diante do sofrimento de Cristo e, enfim, pela alegria da ressurreição.
Nas casas dos meus bisavós e avós, não ligar televisões, rádios, não realizar festas era o sinal mais profundo de respeito. O silêncio sempre tomou conta da nossa família ainda na Quinta-feira Santa, momento da última ceia de nosso Senhor Jesus.
Na Quinta-feira Santa nossa única tarefa era escolher o peixe para a Sexta-feira Santa, algo criterioso. Íamos ao Mercado do Porto e, às margens do rio Cuiabá, tínhamos uma verdadeira aula. Minhas avós, as professoras Maria Nunes e Elzira Cavalcanti, eram muito exigentes e ensinavam que o peixe tem que estar com a guelra vermelho vivo, olhos brilhando. Como estávamos à beira do rio, o peixe tinha que estar vivo, a barbatana batendo. Após essa escolha, os meninos, da mesma idade que eu, limpavam os peixes ali mesmo, escamavam, tiravam as vísceras. Então, a escolha do prato do dia seguinte estava feita.
Na Sexta-feira Santa, que relembra a paixão e morte de Jesus Cristo na cruz, o luto dominava. O silêncio profundo. Até as palmadas dos pais eram suspensas, pois se acreditava que "bater era como bater em Jesus".
Mas, neste dia, uma tradição cuiabana acabava falando mais alto para as moças. Reza a lenda que aquelas que comessem a canjica em 7 casas diferentes, na Sexta-feira Santa, iriam garantir um casamento bem sucedido.
O silêncio absoluto da Sexta-feira Maior, como os cuiabanos mais antigos chamavam a Sexta-feira Santa, era suavemente rompido na madrugada do Sábado de Aleluia, quando os mais velhos iam em busca da Branda Mundo, uma planta que, colhida naquele momento, segundo as tradições, serviria de proteção para todo o ano.
Minha bisavó ia para o cerrado, em busca da planta. A folha era guardada em um relicário, feito à mão, de tecido, que ficava o ano todo como uma proteção. Diziam os antigos que a Branda Mundo tem o poder de abrandar pessoas bravas, de resolver as coisas em paz, de evitar confusão.
Na mesma madrugada, era necessário reforçar os cuidados com as galinhas. Era uma tradição roubar galinha do vizinho para fazer farofa no sábado.
Tradições populares, cheias de humor, fé e simbologia, faziam parte da alma desse povo simples e crente.
No Sábado de Aleluia era dia de arrumar a casa, levar umas lapadas de galho de goiabeira ou espada de São Jorge das pessoas mais velhas , para seguir o caminho certo. Era dia de malhar Judas.
Lembrar de cada detalhe desses dias santos é reviver um pedaço da fé que molda quem somos. São tradições que não apenas resistem ao tempo, mas que fortalecem a nossa identidade como povo e como cristãos.
E, então, chega o Domingo de Páscoa, dia da Ressurreição do Senhor. A tristeza dá lugar à alegria, os sinos tocam, os corações se enchem de júbilo. É a certeza da vitória de Cristo sobre a morte, é o renascimento da esperança, a promessa da vida eterna.
Entre abraços e orações, o povo cuiabano celebra com um verdadeiro banquete, a tradicional peixada, o leitão assado, o churrasco, entre outras delícias, com a mesa farta, mas, acima de tudo, com o coração repleto de fé e gratidão.
Ser cuiabana e ser cristã são raízes que me sustentam, marcas indeléveis da história da minha família e da minha alma. Viver a Páscoa em família, mergulhada em tradições cheias de simbolismo, fé e amor, é mais do que seguir costumes, é reviver, a cada ano, o milagre da ressurreição dentro de nós.
E encerrar esse ciclo sagrado com um dia de esperança renovada, de alegria partilhada e de união familiar é como respirar fundo após uma longa travessia. É reencontrar a paz, o propósito, e a certeza de que a vida, quando vivida na fé e no amor, sempre renasce mais forte.
*Kaene Almeida é cuiabana, gastróloga, nascida e criada no berço cultural da gastronomia cuiabana.
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