Gonçalo Antunes de Barros Neto
Em Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Immanuel Kant propõe um dos mais audaciosos projetos da filosofia moderna: estabelecer a moralidade não com base em convenções, consequências ou inclinações humanas, mas a partir da razão pura. Neste texto seminal, Kant busca delinear os princípios fundamentais de uma ética universal e necessária, que não dependa de circunstâncias particulares ou de interesses subjetivos. A obra inaugura a base teórica de sua filosofia moral, que será aprofundada em escritos posteriores como a Crítica da Razão Prática e a Metafísica dos Costumes.
No centro da obra está o conceito de imperativo categórico, princípio que determina a ação moralmente correta. Diferentemente dos imperativos hipotéticos — que indicam ações condicionais para atingir certos fins (por exemplo: “se você quer ser saudável, deve se exercitar”) —, o imperativo categórico é absoluto, valendo por si. Sua formulação mais conhecida é: age apenas segundo uma máxima tal que possas, ao mesmo tempo, querer que ela se torne uma lei universal.
Esse princípio exige que cada ação seja examinada pela sua capacidade de ser universalizada. Em outras palavras, antes de agir, o indivíduo deve perguntar-se: “E se todos agissem assim?” Se a máxima da ação não puder ser transformada numa lei universal sem contradição, ela é moralmente inaceitável. Dessa forma, Kant introduz uma moralidade que não depende das consequências dos atos, mas da forma racional com que são concebidos.
Um dos conceitos mais poderosos da Fundamentação é o da autonomia moral. Para Kant, o ser humano é livre enquanto age segundo leis que ele mesmo, racionalmente, reconhece como válidas. Essa liberdade racional não se confunde com o fazer o que se quer, mas sim com agir de acordo com um dever que a razão impõe a si mesma. A moralidade, portanto, nasce da liberdade — não como libertinagem, mas como obediência à razão pura.
Daí decorre também o princípio da dignidade humana: cada pessoa deve ser tratada como fim em si, nunca como meio para um fim. Kant escreve: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre, ao mesmo tempo, como fim, e nunca simplesmente como meio.”
Esse princípio se opõe radicalmente a toda forma de instrumentalização do outro, seja por interesse econômico, político ou emocional. A dignidade não tem preço; ela é o valor absoluto que fundamenta os direitos humanos e a ideia de justiça.
Kant começa sua obra com a tese de que nada pode ser considerado bom sem restrição — exceto a boa vontade. Tal vontade é boa não por aquilo que produz ou realiza, mas por si mesma, pelo simples fato de agir por dever. Mesmo que uma ação resulte em consequências negativas, se foi guiada pelo dever racional, ela mantém seu valor moral. Esse conceito rompe com as éticas consequencialistas, como o utilitarismo, que julgam o valor moral das ações pelos resultados.
Kant opõe-se às éticas baseadas em sentimentos, experiências ou desejos — elementos que ele considera empíricos e contingentes. A moral deve ser derivada a priori, isto é, antes da experiência, a partir da estrutura racional do sujeito. Apenas assim pode-se garantir sua universalidade e necessidade. Por isso, a Fundamentação não busca descrever comportamentos morais, mas estabelecer os princípios que devem guiá-los.
A Fundamentação da Metafísica dos Costumes é uma obra breve, mas de densidade filosófica imensa. Ao propor uma moral baseada na razão e na autonomia, Kant estabeleceu uma ética que transcende culturas, religiões e tempos históricos. Seu ideal de universalidade continua a inspirar debates sobre justiça, direitos humanos e liberdade.
Em um mundo marcado por interesses particulares e relativismos morais, o pensamento kantiano permanece como um chamado à elevação da razão como guia de nossas ações — e à dignidade como fundamento inegociável da convivência humana.
É por aí...
Gonçalo Antunes de Barros Neto tem formação em Filosofia, Sociologia e Direito.
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