• Cuiabá, 12 de Julho - 2025 00:00:00

Suelme: história, carnaval, políticas públicas falhas e o percalço para sobreviver de Cultura


Rafaela Maximiano

Uma conversa descontraída sobre cultura, povos indígenas e carnaval foi o tema da Entrevista da Semana, com o mestre em História pela Universidade Federal de Mato Grosso e membro do Instituto histórico e Geográfico de Mato Grosso, Suelme Fernandes.  

“Mato Grosso hoje na matéria de carnaval está em transição e ainda vai ter sua efervescência. Existe carnaval sim em Mato Grosso e em Cuiabá, não da forma da indústria cultural que vemos em outros estados e capitais do país, mas de forma mais simples que lembram os blocos de antigamente nas comunidades, em famílias, em bairros”, cita Suelme.  

Ao FocoCidade, o também escritor, ativista cultural e pesquisador especialista em patrimônio e história de Mato Grosso, avalia o cenário vivido pelo artista mato-grossense; a dificuldade de quem vive de cultura em acessar as leis de incentivo e também de prestar contas; fala sobre o patrimônio imaterial e o carnaval em nosso estado.  

Sobre os Yanomami pontua:  “o que aconteceu com esse povo foi desrespeito à autonomia e à determinação dos povos indígenas. O Estado Brasileiro, a Funai, não poderiam permitir que uma atividade clandestina se estabelecesse em área indígena inclusive sem o consentimento do próprio povo indígena. O Governo pôs o seu território nacional vulnerável. Alguns falam de crime contra humanidade, de genocídio, uma vez que o próprio Governo foi avisado de que isso estava acontecendo lá e não se buscou nenhuma alternativa para proteger”.  

Confira a Entrevista na íntegra:  

Tendo em vista os cenários político e econômico, como o artista e o produtor cultural mato-grossense sobrevivem atualmente?  

Vou começar fazendo uma analogia: o artista Humberto Espíndola pintou no Palácio do Governo do Estado de Mato Grosso, na década de 70, aqueles painéis de bois, natureza, etc, em meio a um movimento chamado bovinocultura. Na verdade, já naquela época ele fez uma crítica à cultura da pecuária, do agronegócio. O Palácio chama-se Paiaguás, uma referência aos indígenas que foram dizimados para dar lugar à pecuária. Então em 1970, 72 já tinha essa discussão da bovinocultura. Muita gente não compreende essa crítica gigantesca que ele fez da pintura de um boi com a estrela gigantesca na testa, em referência à bandeira do Estado de Mato Grosso. E ele queria dizer: “vocês dizimaram os índios para desenvolver a cultura do boi, a pecuária”.   

Eu penso que nos dias atuais, no Estado do agronegócio, falar em opções culturais é um desafio político e econômico. Por exemplo, mostrar através da arte a preservação ambiental, a diversidade, e preservação dos povos indígenas, ribeirinhos – que são temas atuais e internacional; é também muito importante para o Estado de Mato Grosso. Estado este que retoma os investimentos na área da produção cultural, proporciona oportunidades de pensar diferente, sair dessa discussão somente das commodities que mata a gente de tédio, mas é necessária para a economia. Acho pouco os investimentos atuais, mas têm retomado sim.  

Nos últimos anos, as leis Aldir Blanc e a Lei Paulo Gustavo foram responsáveis pela resistência de quem vive de cultura e para estimular a pequena produção. Mas Mato Grosso precisa estruturar imediatamente os seus espaços culturais. Criar mais políticas públicas também. O Governo Estadual tem estimulado que os municípios se organizem no sentido de desenvolver cadeias de cultura, porque onde tem política pública tem recurso, onde não as têm, não teremos cultura. 

Hoje começamos a viver uma efervescência cultural, pois não só na pandemia, mas desde a Copa, vivemos uma estagnação. Da época da Copa para cá temos quase que as mesmas opções de financiamento para cultura. Só se falava em obras de engenharia, infraestrutura. Tivemos uma retomada no primeiro governo do Mauro Mendes, mas paramos novamente pela pandemia e agora retomamos novamente. É um momento de tomada, de revitalização da produção cultural no Estado.  

Em qual área da cultura você citaria como necessário avançar?  

Quesito patrimônio histórico por exemplo é preciso avançar muito. O Estado é rico em paisagens culturais do bioma Amazônico, do Pantanal, por exemplo, que não houve um desenvolvimento cultural tão pleno, a cultura também é um espaço da geração de emprego, renda. Entendo a produção cultural ligada à indústria cultural e turística como alternativa econômica. Então o Estado acaba sendo muito importante em todo esse cenário, fomentando essas iniciativas. 

Também pontuo que num cenário onde a depressão, por causa da pandemia mundial, ficou mais comum, a cultura também é saúde. Cultura é necessária para não viver de tédio, de ansiedade ou de depressão. Ter espaços culturais públicos e gratuitos de cultura também é necessário para a população frequentar, participar, tanto na cidade quanto no campo.  

Então, a cultura também cumpre um papel de saúde pública, saúde mental das pessoas. Investir em cultura é investir em saúde coletiva, é investir em turismo, é investir em uma atividade econômica e garantir a preservação do patrimônio cultural de um povo. É investir no que nos faz mato-grossense.  

Qual a maior dificuldade hoje em acessar as Leis de Cultura que fomentam a produção cultural, principalmente para quem vive de cultura?  

O Estado é absolutamente burocrático na relação com o produtor cultural. Quem vive de cultura não tem muita facilidade de acesso a essas linhas de incentivo. Quando eles conseguem escrever o projeto, que é extremamente burocrático, ele consegue às vezes executar esse processo, mas não consegue depois prestar contas. Existe uma contabilidade pública, porque tem a tomada de dinheiro público, então é preciso uma integração para isto.  

Tem duas formas de resolver isso: ou você facilita as formas de prestação de contas, desburocratiza, ou você deixa como está, fazendo com que o artista viva na clandestinidade, na inadimplência. É preciso pensar em inclusão, pois a maioria desses artistas são autônomos e muitos são pessoas muito simples. É aí que surgem os “abutres culturais”, pessoas que se colocam como produtores culturais e acabam explorando esses artistas, abrem contas bancárias em nome deles, ficam com o cartão de movimentação da conta, uma coisa horrível.  

É um debate importante, tirar esse artista da marginalidade e da subalternidade. Primeiro precisamos democratizar o acesso, apoiar e capacitar os artistas, entidades, sobre a prestação de contas. Essa capacitação precisa ser na forma de catar recurso, escrever o projeto, como executar e como prestar contas. E, esses dois últimos precisam ser permanentes. Segundo, é preciso desburocratizar as leis de incentivo, os editais e até mesmo o Conselho Estadual de Cultura. E, por terceiro sanar os passivos culturais antigos dos artistas.  

Na questão desses passivos, não é somente anistiar, perdoar a dívida. Precisamos identificar a natureza contábil e de execução e buscar uma solução jurídica para esse perdão das dívidas. É aí que precisaríamos de um debate entre os Poderes Constituídos para conseguirmos por exemplo, um Termo de Ajustamento de Conduta, o chamado TAC, para esses artistas, ou seja, uma forma responsável e sustentável para promovermos a inclusão e evitar que esses artistas continuem na clandestinidade.  

Como o senhor avalia o episódio, de como os índios Yanomami foram tratados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro?  

Não só dos Yanomami mas todos os povos indígenas em geral. Como é sempre necessário ter mais áreas agricultáveis, a fricção sobre novas áreas é muito grande. Imagina Mato Grosso onde o hectare é um dos mais caros do mundo. Imagina a pressão sobre os Xavantes que têm um milhão de hectares. Como o governo brasileiro tem dificuldade de cuidar dessas áreas indígenas, ou melhor, Terra Indígena, uma TI, que é uma área que continua de propriedade da União. É uma terra federal com usufruto dos povos indígenas, então quando se invade uma terra indígena está se invadindo uma terra federal. Não pode se permitir que seja feita a exploração dessas terras como aconteceu com os Yanomami. O Ibama fez vista grossa, a Polícia Federal fez vista grossa, o Exército fez vista grossa, pois, tinha 20 mil garimpeiros na terra indígena em uma área de fronteira internacional que envolve a soberania nacional. Esse ouro pode estar evadindo, pode ter narcotráfico, pode ter relação com grupos terroristas internacionais de guerrilheiros, grupos de todo tipo de atividade ilícita que a América Latina tem.   

O Governo pôs o seu território nacional vulnerável. Alguns falam de crime contra humanidade, de genocídio, uma vez que o próprio governo foi avisado de que isso estava acontecendo lá e não se buscou nenhuma alternativa para proteger. É uma visão que se tem por parte da sociedade de que as terras indígenas devem servir para exploração econômica do povo brasileiro. Só que a terra indígena é de usufruto do próprio povo indígena a quem compete a iniciativa de explorar ou não suas áreas, o que não aconteceu no caso dos Yanomami.  

Nós temos por exemplo a situação dos Parecis, que incomodaram os fazendeiros do entorno, porque decidiram plantar soja, e não tem problema nenhum. É uma iniciativa deles e a terra é de usufruto deles. Desde que a atividade econômica seja para o uso dos povos indígenas não há problema nenhum. Tem tipos de exploração que os povos indígenas reconhecem como legítima: a agricultura comercial de escala; agricultura familiar onde eles também podem vender uma pequena parte da produção na cidade; e o extrativismo vegetal, onde ele produz só para subsistência e retira tudo da terra dele, caça, pesca, planta mandioca, não exploram a terra para vender.   

No caso da primeira opção que seria agricultura em grande escala ou até exploração da mineração, quem tem que decidir é o próprio povo indígena, respeitando as legislações ambientais e a forma sustentável e de preservação ambiental.  

O que aconteceu com esse povo foi desrespeito à autonomia e à determinação dos povos indígenas. O Estado Brasileiro, a Funai, não poderiam permitir que uma atividade clandestina se estabelecesse em área indígena, inclusive sem o consentimento do próprio povo indígena. E, a ideia de que tem muita terra para pouco índio, não podemos esquecer que todas as terras eram dos índios antes da chegada do português.  

O que falar de patrimônio imaterial em Mato Grosso?   

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico, o Iphan fez um levantamento sobre patrimônio imaterial e parece que Mato Grosso só tem três bens imateriais tombados, mas esse levantamento apontou que temos mais de mil itens de manifestações culturais que poriam ser preservadas. Por exemplo, a reza cantada é um patrimônio imaterial, um conhecimento ancestral. A festa de São Benedito é outro exemplo. Os modos de fazer também são patrimônios imateriais, como a forma de limpar o peixe que vemos lá na Feira do Porto, é uma técnica ancestral, vem dos índios esse conhecimento e precisava ser preservada, é um patrimônio imaterial.  

As formas de fazer, as formas de pensar e as manifestações simbólicas, precisam ser preservadas. Podemos incluir aqui as formas de viver, de se relacionar. Ainda há muito que se fazer e não falo só do Estado, as empresas inclusive do agronegócio, têm um compromisso social de investimento nesses projetos culturais como um todo.  

Me parece que o linguajar cuiabano, uma festa de Santo no interior e outro item, são os únicos tombados entre mais de mil itens. E, esse tombamento garante que o Estado invista na preservação, divulgação e manutenção daquelas práticas para que elas não se percam.  

É preciso enxergar a cultura não só de uma forma romântica, saudosista de quem quer preservar o passado, um museu. Mas pensar como um potencial econômico, é preciso agregar valor.  

Então o carnaval é um patrimônio imaterial, mas Mato Grosso tem tradição de carnaval?  

Nosso carnaval antigamente era dos blocos de rua e com ascensão dos meios de comunicação e principalmente a televisão o carnaval se profissionalizou demais. Primeiro começou a seguir os carnavais de rua do Rio de Janeiro. À medida que o carnaval se tornou uma indústria cultural, de entretenimento e de lazer, como se vê hoje, foi se perdendo a tradição de fazer os carnavais cuiabanos, os famosos. Hoje ninguém quer mais aqueles bloquinhos pequenos, simples. As pessoas querem a emoção do trio elétrico, das grandes escolas de samba.   

Mas o carnaval ainda existe em Cuiabá das formas mais tradicionais, principalmente nos bairros. Em algumas cidades do interior também. Podemos citar a praça do CPA, que sempre foi um grande espaço cultural, na praça do Pedra 90, tem Santo Antônio do Leverger, Nossa Senhora do Livramento. O nosso carnaval e da Baixada Cuiabana é o carnaval do Pantanal, com a nossa tradição. Santo Antônio do Leverger, por exemplo, tem uma tradição do boi descer a serra. Os bois saem nas ruas durante o dia e as pessoas fazem festa. E, temos lugares do Pantanal que ainda mantêm comemorações de carnaval com siriri e cururu. As tradições que se tinha no passado foram se perdendo, o carnaval de rua foi se esvaziando porque ele é caro e o poder público não deu conta de manter e para mantê-lo é preciso também investimento da área privada e temos poucos investimentos nesse sentido. Tem Chapada dos Guimarães que tem um carnaval bacana, tem cachoeiras, então é ambiental também, aproveita para ter acesso à natureza e os pontos turísticos da cidade lotam.   

Mato Grosso hoje na matéria de carnaval está em transição, e ainda vai ter sua efervescência. Hoje existe carnaval sim em Mato Grosso e em Cuiabá, não da forma da indústria cultural que vemos em outros estados e capitais do país, mas de forma mais simples que lembram os blocos de antigamente nas comunidades, em famílias, em bairros. Acho que falta também identificarmos as formas de curtir o carnaval em Mato Grosso e divulgar oficialmente, para todos saberem.   




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