• Cuiabá, 01 de Julho - 2025 00:00:00

Sirlei Theis: a linguagem do amor é a que falta para a humanidade


Rafaela Maximiano

A Entrevista da Semana aborda o tema de violência doméstica. Mas não sobre a ótica dos números e legislações vigentes, mas sobre uma forma de mudar essa realidade. Sobre o tema, o FocoCidade conversou com a advogada Sirlei Theis - candidata à Câmara Federal. 

Vítima de um relacionamento abusivo em uma época que não existia Lei Maria da Penha, não existia delegacia da mulher e nenhuma estrutura que amparasse as vítimas, Sirlei conseguiu ressignificar sua vida e passou a ajudar outras pessoas. 

“Foi um período bem difícil, sofri tentativa de homicídio, violência física, psicológica e sexual e só consegui sair deste ciclo, que poderia ter me levado à morte, porque teve ajuda. Depois de ter superado meus traumas, transformei sua vida, tanto pessoal quanto profissional e comecei a ajudar outras pessoas que passaram e passam pelo mesmo obstáculo. Assim, surgiu o Programa Supere-se”, relatou. 

A entrevista aborda a trajetória da palestrante, casos nacionais de violência contra a mulher, o aumento de casos de violência doméstica durante a pandemia, políticas públicas e a mulher na política.  

“Precisamos de um despertar de consciência sobre o que tem assombrado muitas famílias, que é a violência doméstica. E, essa mudança precisa ser olhada por todos nós e pelas instituições que trabalham com gente: escolas, igrejas, associações, todo lugar que trabalha com pessoas precisa abordar essas pautas, não só voltado para a legislação sobre o que é crime, a gente precisa levar um despertar de consciência sem julgamento. Eu vejo que a linguagem do amor é a que falta para a humanidade”, pontua Theis.  

Boa leitura!  

Para quem não a conhece fale um pouco da sua trajetória e explica por que trabalhar com assuntos relacionados à violência contra a mulher e abusos contra vulneráveis?  

Eu escrevi um artigo que teve uma repercussão muito grande não só no Estado de Mato Grosso, mas em todo o país. Isso porque até então muitas pessoas não assumiam publicamente que haviam sido vítimas de violência, principalmente mulheres que já tinham formação de grau superior. Eu já tinha duas faculdades, tinha um cargo com certa relevância dentro da administração pública e havia sofrido violência doméstica.  

Eu pensei várias vezes antes de publicar aquele artigo, até que ponto ia impactar negativamente para mim, mas para minha surpresa o número de pessoas que entrou em contato comigo veio mostrar que a violência doméstica não estava só na periferia, mas sim em todos os lugares. Inúmeras pessoas me diziam: “parabéns pela coragem, eu também fui vítima, mas não tive coragem de falar”. Eram empresárias, policiais, do judiciário, pessoas de todos os níveis, de todas as idades, muitas já tinham vivido violências e ainda traziam marcas, seqüelas. Essas pessoas me disseram: “agora você não pode parar mais”. Essa repercussão do artigo me oportunizou participar de um programa nacional e me deu uma visibilidade nacional também para começar esse trabalho. Não foi algo que eu planejei, foi algo que ocorreu em razão desse artigo que eu escrevi.  

Num primeiro momento eu achei que ia ajudar outras mulheres com o meu conhecimento jurídico, mas não demorou muito para perceber que na realidade o que estava fazendo efeito e transformando a vida dessas pessoas era a minha experiência com a dor e os cursos de formação que eu tinha feito de alto conhecimento, entre eles o de constelação familiar. Aí criamos o grupo terapêutico “Supere-se” no início de 2017 e começamos a acolher mulheres vítimas de relacionamentos tóxicos, abusivos ou até de uma separação. Pois muitas vezes quando alguém sai de uma separação, ela passa por um processo de luto e o final de uma relação é sempre muito desgastante. E, o grupo de apoio acolhe essas mulheres, com aulas, com a recuperação da autoestima, do amor próprio, e elas percebem que estão prontas para denunciar, ou se separar.  

Também as ajudamos a traçarem um plano, seja financeiramente para serem dependentes, a pensarem como vão sobreviver ou a conseguir um trabalho. Identificamos nela o talento para empreender, algumas fazem artesanato, doces, bolos, biscoitos. E essa autonomia empodera elas e hoje temos mulheres que fizeram parte do projeto tanto aqui no Estado como em todo o país.   

O processo de superação é individual, não tem como ajudar a pessoa se ela não quer ajuda, somos apenas uma ferramenta. Mas o fato de termos outras pessoas que já superaram fazendo parte do projeto, essas inspiram as que vão chegando. Esse projeto é importante e transformador porque quem participa não resolve só a questão do relacionamento abusivo, ela vai ressignificar a vida dela. É isso que fazemos: ajudamos a transformar.  

Recentemente vimos o caso de uma mulher que foi abusada pelo médico logo após o parto. O que leva uma pessoa que tem formação superior, um cargo de médico a cometer um crime como esse?  

É um caso muito triste. Todos somos seres humanos e estamos passíveis de desenvolver distúrbios e transtornos emocionais e de personalidade. Nós também trazemos muitas referências do que vivemos dentro de caso. Nesse caso não tem como fazer um diagnóstico preciso, mas não é normal. Tanto as pessoas que trazem algum transtorno ou cresceram dentro de um ambiente onde este tipo de comportamento era praticado elas sempre vão procurar ambientes que vão favorecer para elas reproduzirem esse comportamento. Os pedófilos, por exemplo, vão se preparar para estarem em ambientes que eles tenham acesso a crianças. Precisamos investir em políticas que consigam identificar isso com antecedência como é o caso desse médico, ele deve ter algum transtorno de personalidade, não que justifique, ele tem que pagar pelo crime, agora nós temos que ter processos seletivos, psicotécnico, que identifiquem qualquer tipo de transtorno nas pessoas.  

Nós vivemos em uma sociedade doente, a doença mental faz parte da vida de muitas pessoas. Uma das principais pautas é investir em saúde mental. Crianças muitas vezes nascem em um ambiente onde atitudes erradas são praticadas, muitas já são vítimas de abusos e se transformam em outros abusadores. Precisamos proteger as crianças, para não termos mais pessoas desequilibradas e praticando abusos na sociedade.   

A pandemia chamou a atenção para a violência doméstica, não só de mulheres, mas também de crianças e outros públicos vulneráveis. Na sua opinião, os casos de violência doméstica aumentaram na pandemia ou as pessoas estão encorajadas a denunciar?  

Eu acredito que aumentaram os casos. Intensificaram no período da pandemia, porque as pessoas começaram a ficar mais tempo juntas. Mesmo aquelas pessoas que já viviam relacionamentos tóxicos, o fato de a pessoa sair, trabalhar, ficar fora de casa, minimizava um pouco a violência em si. De repente as pessoas passaram a conviver 24 horas, a tendência é que intensifique mais. O que muitas vezes era suportável passou a ser insuportável. Também chamo a atenção para o período da pandemia, a quantidade de separações que teve. Assim também como existiam relacionamentos que vinham de relacionamentos abusivos e desgastantes, mas ficar junto 24 horas também intensificou e foi quando muitos casais se separaram nesse período. Então, a pandemia veio trazer à tona muitas coisas que estavam meio disfarçadas.  

A legislação específica de violência contra determinados públicos ajuda ou somente por ser agressão já deveria se punir. Um crime de agressão ou até morte seja de mulher, criança, público LGBTQIA+, já não bastaria para Justiça atuar? 

Eu sou defensora de políticas inclusivas e não exclusivas. E, de certa forma, quando a gente cria uma legislação pontual para defender a mulher, nem sempre ela é inclusiva, porque ela está excluindo outras pessoas. A gente sabe que a violência doméstica ocorre de todas as formas, seja do homem contra a mulher e da mulher contra o homem também, dos pais contra os filhos e dos filhos contra os pais também, então a violência no ambiente doméstico acontece de todas as formas. Eu defendo políticas que são inclusivas e acredito que se a Lei Maria da Penha atendesse todo e qualquer tipo de violência teria uma eficiência melhor porque hoje muitas pessoas que usam a Lei Maria da Penha, usam de má-fé. Às vezes para se vingar de uma relação que não deu certo. E, àquelas que realmente precisam às vezes não têm coragem de usar.   

A Lei Maria da Penha veio em um momento importante, trouxe uma repercussão para a questão da violência doméstica. No início existiram juízes que tentaram usar a lei para todo e qualquer tipo de violência dentro do ambiente doméstico, mas ela foi taxativa que era só para a mulher. Na minha opinião, como ex-vítima de violência doméstica, advogada e militante nessa área, a lei sim prejudica e exclui outros casos. Falo isso também porque dentro do nosso projeto atendemos todos os públicos, não excluímos ninguém. Inclusive atendemos os homens, aqueles que se entendem como abusivos, e buscam ajuda, damos todo o suporte para ele.

Entendo que é o acolhimento que vai fazer que essa pessoa mude, porque se ficarmos só apontando o dedo e ficar colocando toda a responsabilidade no homem, a tendência é ficar cada vez mais difícil, hoje já existem pesquisas que demonstram que homens ou qualquer pessoa abusiva, ela já é uma vítima direta ou indireta da violência.

Ninguém nasce abusivo, ninguém nasce violento, ou corrupto, o ambiente em que você cresce vai te transformar. Se hoje nós temos um índice muito grande de homens que estão praticando a violência é porque esses homens tiveram essa violência e abuso como referência. Para mudarmos e combatermos essa realidade precisamos começar a ressignificar essas informações equivocadas. Eu cito um exemplo nas minhas palestras e pergunto: qual é maior referência que você tem de amor na sua vida? Sua mãe, pois você é gestado no útero dela por nove meses, então você tem uma relação tão profunda com a sua mãe que quando você nasce você a reconhece pelo cheiro. Só que essa mãe é um ser humano, e achamos que ela é uma super heroína e não pode errar. Ela é um ser humano que também foi filha, e também pode ter sofrido traumas e abusos e a forma com que ela aprendeu a lidar com isso foi abusando também.

Se essa mãe que é o maior símbolo de amor, em razão do que ela aprendeu, ao mesmo tempo em que ela fala que te ama ela te bate, ou grita e ofende, qual é a referência que você vai levar do amor? A pessoa via levar para a vida a referência que é normal quem ama, bater. A pessoa cresce e leva essas referências para os relacionamentos. Então precisamos trabalhar essa mudança de consciência, não adianta só implementar políticas e legislações que vão punir, pois isso não vai mudar a realidade, precisamos de políticas que vão mudar a consciência da sociedade sobre esses crimes e incluir todos os públicos também. 

A vulnerabilidade social pesa como ingrediente no contexto de violência contra a mulher ou a violência independe de classe social?  

Ela independe, está presente em todas as classes sociais. E, hoje eu vejo que a pessoa que está na periferia é mais fácil de denunciar do que a mulher ou a vítima que está dentro da mansão. Até porque lá na periferia se a pessoa dá um grito o vizinho escuta e temos muitas mulheres sofrendo dentro de suas mansões.  

Qual a importância da participação da mulher na política principalmente para mudar esse cenário de políticas públicas?  

O equilíbrio é necessário em todas as frentes. Hoje nós temos a grande maioria dos representantes políticos são homens e isso acaba implicando nessas políticas públicas porque ninguém melhor de quem conhece a dor para defender o processo correto. Muitas mulheres inclusive falam sobre a pauta de violência doméstica, mas que muitas vezes desconhecem a realidade desse processo o que acaba com políticas equivocadas que acabam apenas minimizando a situação.  

Agora, a mulher na política também sabe das dificuldades, porque nós, além de profissionais, continuamos a ser donas de casa, continuamos a ser mães responsáveis pelos nossos filhos, pela educação deles, porque nós mulheres adotamos isso como nosso e inconscientemente a gente não abre mãos disso para os pais. Inconscientemente absorvemos essa carga e achamos que se abrirmos mãos dessa responsabilidade vamos perder nosso espaço, quando na realidade a mulher precisa começar a evoluir nessa consciência e entender que nós não somos supermulheres, somos mulheres, seres humanos e precisamos ir até onde podemos.

Somos profissionais, estamos no mercado de trabalho, e, muitas vezes a gente abraça tudo aquilo dentro de casa, e os homens trabalham e chegam dentro de casa e ficam sentados assistindo televisão e a mulher não para. Precisamos ter a consciência de que o homem precisa participar, as duas pessoas estão trabalhando fora de casa então os afazeres domésticos também são dos dois, ou seja, a partir do momento que você começa a construir uma família as responsabilidades são dos dois e isso precisa ser dividido.   

E, hoje essas necessidades e dificuldades que a gente tem com a saúde pública, educação e tantas outras, quem tem domínio para saber atender as necessidades dessa mãe é a mulher. O homem por mais que ele possa falar sobre essa pauta ele não conhece a dor da mulher. Então precisamos de equilíbrio em todas as frentes e na política a gente vê um desiquilíbrio muito grande. Mas eu não responsabilizo só o homem por isso, responsabilizo a gente também, porque a gente vem de uma crença de que a política não um lugar para mulher da mesma forma que o homem traz essa crença de que ali não é o nosso lugar.

Precisamos desacreditar essas crenças de que na política não é o nosso lugar e temos mulheres altamente capacitadas não somente para bastidores da política, mas para estar à frente preparada para enfrentar as urnas. E, são essas crenças que impedem muitas vezes de colocar nossos nomes a competir também na política. Existe também outra crença que diz: mulher não vota em mulher. E, é muito latente isso. Estive em uma reunião que apresentou dados de que 80% dos eleitores das nossas senadoras e deputadas que estão em Brasília são de votos masculinos. Temos que começar a ressignificar isso também, não que mulher tem que votar em mulher, mas que temos de oportunizar a mulher capacitada.  

Quero ainda botar um pouco de lenha na fogueira: temos também na política, mulheres que ainda não estão preparadas para os cargos e os homens usam isso em benefício próprio, até na hora de convidar as mulheres para participar das eleições porque eles precisam preencher a cota e abandonam essas mulheres durante a campanha política e é claro que elas não vão conseguir se eleger. Precisamos nos fortalecer nesse sentido, estar unidas e não permitir que isso ocorra mais.  

Com a sua experiência, qual avaliação que faz das políticas públicas voltadas para combater a cultura da violência em todos os âmbitos?  

Eu acredito que essa mudança começa a partir de cada um de nós. Se a gente esperar só pelo poder público para acabar com essas dificuldades, vamos demorar um pouco e talvez a nossa geração não vá presenciar isso. Penso que esse despertar de consciência deve partir de cada um de nós. É claro que despertando essa consciência vamos unir forças para cobrar do poder público políticas que realmente vão fazer diferença. Por exemplo, hoje eu vejo que as igrejas precisam evoluir, abrir as portas. É um dos projetos que tenho e foi muito difícil para entrar nas igrejas que achavam que eu ia incentivar a separação, quando na verdade a gente trabalha com o despertar de consciência sobre a violência e cabe a cada um tomar a sua decisão.   

É muito bacana quando a gente está em um ambiente como este e ministra uma palestra sobre a importância de esse despertar de consciência sem julgamento, sem apontar o dedo, e no final da palestra a gente recebe pessoas que se identificaram como abusivas, mas também identificaram a origem desse abuso. E quando ela se identifica a pessoa muda, busca ajuda e a palestra nossa “Supere-se” quer mostrar qual o caminho que ela precisa percorrer para ela ressignificar sua vida. E, para os casais, quando eles identificam que estão em uma relação tóxicas elas se separam e elas nem se dão a oportunidade e quando o casal consegue se identificar onde cada um está é possível reconstruir essa família, muitas vezes eles têm filhos e eles querem mudar por eles, mas as diferenças acabam levando-os a essa relação tóxica e se eles não mudarem isso os seus filhos também vão reproduzir isso na vida adulta.   

Uma das coisas que mais me alegra é quando eu ministro essa palestra e homens vêm me procurar e dizem: “eu consegui identificar muita coisa. Já estou saindo do quarto ou quinto casamento, mas agora eu entendi”. Ele percebeu quantas mulheres ele estava ferindo por não se olhar, a partir desse momento a cura dessa pessoa, a ressignificação não vai só mudar a vida dele. Essa mudança precisa ser olhada por todos nós e pelas instituições que trabalham com gente: escolas, igrejas, associações, todo lugar que trabalha com pessoas precisa abordar essas pautas, não só voltado para a legislação sobre o que é crime, a gente precisa levar um despertar de consciência sem julgamento. Eu vejo que a linguagem do amor é a que falta para a humanidade. 




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