Rafaela Maximiano - Da Redação
Em defesa do “Agosto Lilás”, o FocoCidade aborda nesta Entrevista da Semana a questão da violência contra a mulher, com destaque para a relação deste problema com as ações de isolamento ligadas ao coronavírus e a Lei Maria da Penha.
A entrevistada é a defensora pública Rosana Leite de Barros, que é coordenadora do Grupo de Atuação Estratégica em Direitos Coletivos para atuar na defesa das mulheres, o Gaedic Mulher, da Defensoria Pública de Mato Grosso.
Durante a conversa, ela explica que os casos de violência atingem as mulheres de forma indiscriminada; reforça que a situação é muito anterior à pandemia de covid-19, mas que acabou sendo amplificada pela necessidade de convívio permanente, forçada pela questão sanitária; aponta canais para noticiar esse tipo de crime e destaca a importância de denunciar.
A defensora também alerta para o fato dos casos de feminicidio no ambiente familiar e doméstico terem aumentado durante a pandemia. “...aqui em Mato Grosso, muitas mulheres deixaram de buscar atendimento, as estatísticas diminuíram com o início da quarentena, e, mesmo com essa diminuição nós sabíamos que a violência tinha aumentado. Todavia, fomos ter essa certeza com o aumento dos feminicídios dentro dos ambientes domésticos e familiares, e foi algo que nos preocupou”, relata.
Apesar de todo o cenário de medo, discriminação e violência que permeia o dia a dia de mulheres, Rosana Leite de Barros é enfática ao afirmar que a Lei Maria da Penha é eficaz e eficiente e em Mato Grosso e Cuiabá a rede de enfrentamento para esse tipo de violência e de acolhimento à mulher tem melhorado a cada dia.
“A palavra da mulher é para mim de grande valor pela historicidade, pelo patriarcalismo e pelo machismo estrutural que nós ainda vivemos”.
Boa leitura!
Estamos no “Agosto Lilás” quando se intensifica a divulgação da Lei Maria da Penha e os mecanismos de denúncia existentes. Diante da sua experiência como defensora pública, como avalia o aumento de casos no último ano – mesmo tendo essa legislação especifica e vários canais de denúncia?
Sim, o ‘Agosto Lilás’ traz uma representatividade bastante grande para as mulheres, é claro que nós temos que enfrentar essa violência contra a mulher todos os dias, dentro e fora de casa, mas a violência doméstica e familiar ainda é a que mais acontece. Eu reputo que desde o advento da Lei Maria da Penha nós não tivemos um aumento da violência doméstica e familiar. Se nós fomos olhar... é claro que antes da Lei Maria da Penha nós não tínhamos meios, instrumentos para a proteção à mulher então elas não buscavam o Poder Público. Após a Lei Maria da Penha também os números não apareciam até porque o Poder Público pouco se voltava em quantificar esses números. Desde 2006 é que passou a quantificar esses números por obrigatoriedade justamente da Lei Maria da Penha. Então eu reputo que nós não tivemos nenhum aumento ou diminuição da violência por quanto se nós formos olhar as estatísticas em um ano há uma tímida diminuição, no outro ano há um tímido aumento. Agora, o único delido que eu reputo que houve realmente um aumento no Brasil inteiro foram os feminicídios. Os feminicídios de fato tiveram um aumento, justamente porque hoje a mulher independente financeiramente e emocionalmente, ela não consegue viver por muito tempo em um lar violento, sofrendo violência doméstica e familiar em um relacionamento tóxico.
Então eu entendo que o sistema de Justiça e Legislação fizeram com que nós conseguíssemos enfrentar sozinhos a violência doméstica e familiar: não, ou a violência contra a mulher: não. Nós precisamos sim enfrentar o machismo estruturado o patriarcalismo que permeia toda essa situação que nós passamos. É claro, a Lei Maria da Penha é um importante instrumento, mas sozinha ela não conseguirá resolver toda essa situação, infelizmente.
Os crimes de violência doméstica ocorrem independente da classe social ou o poder aquisitivo do agressor interfere na sua exposição e condenação?
A Lei Maria da Penha é uma lei que deve ser aplicada indistintamente, em qualquer situação, para qualquer pessoa. Inclusive, eu costumo dizer que não há face para vítimas e não há face para agressores, a qualquer momento uma mulher pode ser vítima e a qualquer momento um homem pode ser agressor. De tudo o que eu tenho acompanhado a Lei Maria da Penha é uma lei efetiva, eficaz, e, antigamente que alguns crimes não eram expostos, não eram mostrados justamente pela condição do agressor, hoje não. Hoje nós estamos presenciando que esses crimes são expostos, são mostrados e a Lei Maria da Penha se presta sim a atender qualquer classe social, condição financeira, etnia, em qualquer situação, escolaridade, então, eu não tenho dúvida que ela atende a qualquer situação. Inclusive logo no início quando a Lei Mari da Penha foi sancionada uma atriz brasileira sofreu violência familiar e doméstica e foi muito questionada: - mas ela é uma mulher de posses, é uma mulher com poder aquisitivo, a lei Maria da Penha se aplica a ela também? Com certeza, com certeza. Houve uma declaração que a lei se aplicaria também àquela mulher mesmo em tendo poder aquisitivo. Não há qualquer dúvida que a sua aplicação independe para qualquer pessoa que venha agredir uma mulher ela está sujeita à legislação 11.340, que é a Lei Maria da Penha.
A pandemia aumentou a violência contra a mulher e outros públicos vulneráveis como crianças e idosos?
Quando a pandemia surgiu no mundo o que se presenciou foi um aumento contra as mulheres no ambiente doméstico e familiar. Justamente pela quarentena, pelo isolamento social. Muitas mulheres já viviam em um relacionamento tóxico, viviam o ciclo da violência doméstica e familiar e tiveram que viver e ficar em isolamento social, em quarentena. Outras se descobriram em um relacionamento tóxico justamente durante a quarentena. Infelizmente foi possível deslumbrar esse crescimento durante a quarentena. E, o mais curioso é que no início, pelo menos aqui em Mato Grosso, muitas mulheres deixaram de buscar atendimento, as estatísticas diminuíram com o início da quarentena, e, mesmo com essa diminuição nós sabíamos que a violência tinha aumentado. Todavia fomos ter essa certeza com o aumento dos feminicídios dentro dos ambientes domésticos e familiares, e, foi algo que nos preocupou. Se o feminicidio aumentou dentro do ambiente doméstico e familiar e as estatísticas diminuíram, algo grave estaria acontecendo que seriam as subnotificações.
Durante a quarentena as mulheres estavam numa situação mais difícil para pedir ajudar, justamente por estarem isoladas com seus agressores, também por não terem um canal de atendimento e por terem um medo maior. Mas, buscamos todas as instituições de Poder, a Rede de Atendimento buscou de todas as formas fazer com que esse atendimento fosse efetivo inclusive de mostrar a essas mulheres vítimas que nenhuma lei estaria em quarentena ou isolamento e muito menos a Lei Maria da Penha.
A legislação atual é eficaz ou tem falhas? Se sim quais seriam elas...
Sim a Lei Maria da Penha é extremamente eficaz. Inclusive é um dos meios, isso todo mundo fala e reconhece, que é uma das leis mais elogiadas pelos ONU como uma das leis mais importantes do mundo no que diz respeito a defesa da mulher. Então ela é de fato eficiente, ela eficaz; mas, todavia, ela não é uma lei aplicada na integralidade. É uma lei que foi condensada pelos legisladores e legisladoras por contemplar todas as situações até mesmo por exemplo políticas públicas, que se tornou de difícil aplicação no Brasil pois temos problemas de estrutura muito grande em todos os lugares.
Então de fato ela é efetiva e eficaz mas precisamos ainda aplicá-la na integralidade, isso é o que falta para as pessoas sentirem essa efetividade principalmente as mulheres possam sentir essa efetividade. A medida protetiva de urgência se constitui em um papel - que é muito bom deixar claro que a medida protetiva se trata de um papel, onde a mulher recebe essa medida protetiva dizendo que está sendo protegida do agressor e ao requerido também é mostrado que ele não pode se aproximar daquela mulher. Todavia este homem reconhece a rotina dessa mulher por isso, a violência doméstica é tão grave, ele conhece a vida dessa mulher e sabe onde a encontrar. Então, mesmo sendo deferida a medida protetiva há a necessidade de um certo cuidado dessa mulher e não sendo cumprido essa medida ela deve comunicar imediatamente ao Poder Público porque nós temos meios de fazer com que essa medida seja cumprida e que ela sinta que a Lei Maria da Penha seja de fato efetiva e eficaz.
O machismo ainda está presente na nossa cultura?
Infelizmente o machismo está muito presente na nossa cultura, isso é muito difícil de se falar porque em cada gesto, em cada situação, muitas vezes a forma com que a mulher é tratada, nas minucias nós percebemos que o machismo ainda é algo que permeia a nossa sociedade até mesmo para as mulheres estarem postas em lugares e comando, ainda há uma certa resistência tanto que nós percebemos que a maioria dos casos de comando são ocupados por homens. Então, isso é só um exemplo, da forma com que o machismo é arraigado e estrutural e faz parte dos lares e dos males que ele acaba trazendo todos os dias para as nossas vidas. A forma de criação de filhos e filhas, a forma de tratamento diferenciado para um homem e uma mulher então nós devemos pensar muito bem quanto ao Estado Democrático de Direito que vivemos, será que nós estamos vivendo uma democracia onde um é igual a um ou uma é igual a uma, ou um é igual a uma? É algo a se pensar.
A senhora considera que as mulheres estão mais conscientes da importância da denúncia ou ainda apresentam resistência em denunciar?
As mulheres estão de fato se conscientizando cada vez mais da importância de denunciar. Todavia existe muita resistência de algumas justamente pelo machismo estrutural, pela religiosidade, pela dependência emocional, pela dependência financeira, são situação que ainda é visível socialmente. Mas, a consciência sim vem sendo criada a cada dia, inclusive importante rememorar aqui que quando a Lei Maria da Penha fez 13 anos lá em 2019, o Data Senado fez uma pesquisa perguntando às mulheres que não haviam lavrado boletins de ocorrência mesmo sendo vítimas, que não haviam buscado o Poder Público mesmo sendo vítima de violência: qual o motivo de você não ter informado o Poder Público mesmo sendo vítima de violência? Aproximadamente 78% delas responderam que não lavrariam boletim de ocorrência por medo que a agressão se tornasse ainda maior. Isso retrata que há uma desconfiança ainda quanto a aplicabilidade da Lei Maria da Penha. E essa lei vem justamente para abrigar esse tipo de situação. Situações graves que acontecem dentro dos lares. Não há ainda essa confiança por algumas pessoas que ela é uma lei que protege.
Então isso nos deixa preocupada e acho que é o motivo das subnotificações também. Mas reputo que as resistências acontecem justamente por esses motivos. Por isso a importância das campanhas de divulgação, da importância da lei, da importância de se denunciar, de que os feminicídios acontecem dentro do ambiente doméstico e familiar após violências menores, então tudo isso é importante se mostrar para que a consciência seja criada a cada dia com mais força ainda para podermos enfrentar essa violência doméstica e familiar.
Como está hoje a defesa da mulher pela Defensoria Pública de Mato Grosso e pelas redes interseccionais que devem atuar na defesa da mulher?
Os núcleos de defesa da mulher da defensoria pública existem nacionalmente e nós fizemos questão pela visibilidade de deixar o nome Nudem (Núcleo de Defesa da Mulher de Cuiabá) para que em todos os lugares as mulheres possam se identificar com esse núcleo. Então, em todos os lugares do Brasil há um Nudem, onde nós atendemos toda mulher vítima de qualquer violência. Tanto dentro quanto fora de casa e onde for buscado o atendimento pelo menos o encaminhamento nós vamos dar. Esse é um trabalho que foi muito bem recepcionado, muito bem compreendido pela sociedade, tem sido um trabalho muito respeitado e que tem sim contribuído no enfrentamento a qualquer violência que as mulheres venham a passar dentro e fora de casa e a qualquer mulher. Também atuamos em conselhos de direito em comissões, e também juntamente a movimentos sociais que atuam em defesa da mulher. Estamos sempre tentando atuar em parcerias com esses segmentos de defesa da mulher e no enfrentamento as diferentes violências contra ela.
Como está a estrutura pública de acolhimento às vítimas de violência em Mato Grosso e a Delegacia da Mulher? As estruturas e a abordagens são suficientes?
A estrutura em Mato Grosso vem melhorando a cada dia. Os movimentos de mulheres têm pedido, têm reivindicado. As violências que estão ocorrendo, as estatísticas mostram que cada vez mais precisamos de mais estrutura, mais acolhimento, de atendimento a esta mulher. Mas é inegável que nós tivemos uma melhora sim. Hoje nós temos uma delegacia 24 horas, que foi uma demanda pedida por tanto tempo. Temos um novo prédio da delegacia da mulher aqui em Cuiabá, que ficou muito bom para o atendimento da mulher vítima de qualquer violência. Temos um espaço de acolhimento para mulheres dentro do hospital municipal de Cuiabá, então a cada momento vamos buscando melhora nesse acolhimento, nesse atendimento.
Precisamos sim de muito mais comprometimento, precisamos que o Poder Público se comprometa mais em enfrentar essa violência e que entenda de fato que ela não se resume ao espaço doméstico familiar e atinge a toda a sociedade. Quando houver esse entendimento teremos políticas públicas mais eficientes e mais eficazes. A cada momento estamos melhorando sim.
Uma mensagem da defensora Rosana Leite para as mato-grossenses neste Agosto Lilás...
O Agosto Lilás é de fato uma campanha muito importante dessa Lei Maria da Penha, que veio para quebrar paradigmas e mostrar que o ambiente doméstico e familiar não é mais inviolável, pois se crimes acontecem o Poder Público tem que entrar para evitar que algo de pior aconteça para essa mulher vítima. E, eu sempre darei credito à palavra da mulher. A palavra da mulher é para mim de grande valor pela historicidade, pelo patriarcalismo e pelo machismo estrutural que nós ainda vivemos.
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