• Cuiabá, 05 de Setembro - 2025 00:00:00

Analistas criticam decisão de Bolsonaro de comemorar golpe de 64


Sonia Fiori - Da Editoria

A determinação do presidente Jair Bolsonaro ao Ministério da Defesa relativa às “comemorações devidas” por ocasião do aniversário da tomada do poder pelos militares, em 31 de março de 1964, gerou não apenas acaloradas discussões mas sobretudo imediata reação na sociedade civil organizada, instituições (Ministério Público Federal/Defensoria Pública) e Justiça – em manifestos de veto do ato alusivo ao golpe militar.  

O significado e eventuais reflexos sobre a posição de Bolsonaro são pontuados numa leitura relativamente crítica, passando pela avaliação dos principais analistas políticos do Estado, Alfredo da Mota Menezes, João Edisom, Lourembergue Alves e Onofre Ribeiro, nessa Entrevista da Semana especial ao FocoCidade.

Se por um lado seria vislumbrada no Poder do país a ideia de tentar emplacar a perspectiva ideológica sobre “feitos” da ditadura ou apenas “rememorar e não comemorar”, por outro, a exposição demasiada na chaga do golpe militar provoca descrédito na performance de atuação política de Bolsonaro – principalmente no âmbito de falhas sobre a arte de governar, como alertam analistas entrevistados.

Confira na íntegra a leitura sobre esse cenário:  

Lourembergue Alves    

“Em sua posse, no Congresso Nacional, à frente de parlamentares e de convidados, o presidente jura respeitar e defender a Constituição Federal. A constituição é, em outras palavras, o estatuto do Estado brasileiro, cujo artigo 1º. diz que este “constitui-se em Estado democrático de direito”. Ao propor a comemoração do golpe de 1964, o presidente rasga este preceito constitucional, e provoca estragos irreparáveis, além de tentar manipular e “vender” inverdades no lugar dos fatos e de verdades históricas.

Um cidadão comum, até por desconhecimento ou mesmo por estar dominado emocionalmente ou fanaticamente com uma falsa ideia, é compreensível sair-se em defesa de um movimento, e propagá-lo como ideal, ainda que não seja. Mas não o presidente da República. O presidente não é uma pessoa comum. O presidente fala pelo Estado e pela sociedade. E, neste caso, todo cuidado é pouco.

Por outro lado, cabe outra explicação. Antes, porém, da explicação, é necessário que se faça uma pequena provocação. Imagine-se, leitor, que alguém conseguiu arregimentar uma porção de mato-grossenses. Em seguida, parte para o Palácio Paiaguás, e, a força, destitui o governador. Ou melhor: esta mesma pessoa, juntamente com milhares de brasileiros, parte para a residência oficial, em Brasília, e destitui o presidente do cargo. Você, leitor, considera essas ações de destituições como legais e morais? Se as considera lega e moral. Então, mostre qual foi o crime cometido pelo presidente e pelo governador. Se houve crime de responsabilidade, os julgamentos serão feitos pelas instâncias apropriadas para serem julgados.

A Assembleia Legislativa julga o governador e o Congresso Nacional, o presidente da República. Esta regra não é nova. É antiga. Valia também em 1964. Acontece, tal como os atuais presidente e governador, o presidente João Goulart não cometeu crime algum, nem mesmo o de responsabilidade. Mas foi destituído. Destituído por um golpe. Palavra golpe que foi substituída pelo termo “revolução”, e instalou-se um novo regime. Regime burocrático-militar. Regime que, segundo dizem, serviu para livrar o ‘país do comunismo’.

Isto sustentado pela seguinte argumentação: (1) “A administração pública estava tomada por comunistas”, e o presidente da República os apoiava integralmente, assim como também apoiava a rebelião esquerdista em todos os setores, particularmente nas Forças Armadas; (2º.) Luiz Carlos Prestes, em janeiro de 1964, voltara de Moscou, com o fim de desencadear uma guerrilha no campo, e forçar a transformação do país em comunista; (3º.) os governadores de São Paulo e da Guanabara montaram uma força paramilitar, com vistas a fazerem o enfrentamento aos comunistas, o que levaria o país a uma guerra civil. Diante desta situação ‘perigosa’, o presidente foi derrubado do poder. ‘Os militares livraram o país do comunismo’. Esta afirmação foi alimentada durante todo o período de vigência do regime.

Mesmo depois do seu término, muita gente ainda acredita nisto. Mas, o que há de verdadeiro nisso tudo? Inicialmente, é preciso dizer que a administração pública federal jamais esteve controlada por comunistas. Também é necessário dizer que o país jamais correu o risco de ser transformado em comunista. Nunca houve esse risco. Mentira muito bem contada. Inventada em anos anteriores. E retomada pela cúpula da UDN. Tanto que Carlos Lacerda foi um de seus maiores propagadores. Ele tinha seus interesses particulares e ambições políticas para propagá-la. Mas, de verdade, nada havia nesta direção. Havia rebeliões no campo, até em razão de suas péssimas condições de vida, assim como manifestações urbanas, que já ocorriam desde o século XIX. Pois se encontrava em curso todo processo de formação política no país. Isto desde o fim do Estado Novo. Discutia-se o a situação do país. Nada de querer transformá-lo em comunista. Pois inexistia tal movimentação.

O Congresso Nacional era dominado pelos setores mais conservadores, assim como também eram dominados as Forças Armadas, e a própria administração pública. Nenhum chefe do Poder Executivo tinha saído da esquerda. Eurico Gaspar Dutra era general e de ultraconservador; Getúlio Vargas advogado e fazendeiro, embora tivesse concedido alguns ganhos aos trabalhadores, até por conta de seu próprio interesse político, era ligada a direita; Juscelino K. de Oliveira era médico e oficial da Polícia Militar de Minas Gerais; Jânio Quadros era advogado, professor e ligada à direita, embora jamais tenha se filiado a UDN; João Goulart advogado e um dos maiores latifundiários do Rio Grande do Sul. Nenhum deles tinha ligação com a esquerda. E, portanto, jamais se colocaram a favor da esquerda. Nem poderiam, até por conta de suas ligações históricas à direita.

Neste caso, ‘o perigo comunista’ era simplesmente uma farsa. Tanto que alguns dos principais apoiadores do golpe de 1964 começaram a sair-se contra o regime instalado. É o caso do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, que chegou a assinar um manifesto juntamente com João Goulart contra a continuidade do regime. Ademar de Barros também passou a se posicionar contra a continuidade dos militares no poder, e passou a assinar artigos bastante contundentes em desfavor da ditadura.

 Uma ditadura que cassou mandatos de parlamentares e seus direitos políticos, bem como de outros agentes políticos. Acabou por cassar também o mandato de governador de São Paulo, Ademar de Barros. Além disso, a ditadura suspendeu por um tempo o funcionamento do Parlamento, e puniu muitos militares apenas porque estes discordavam do regime. Prisões, torturas e assassinatos foram cometidos.

Os filhos de guerrilheiros – crianças - foram severamente presas, índios assassinados e algumas mulheres tiveram interrompidas suas gravidezes. O encontro de três ou mais pessoas nas ruas e praças eram casos de polícia. A censura impedia que muitas coisas, em especial as denúncias de corrupção, envolvendo empresas e agentes públicos chegassem ao conhecimento da população. Corrupção corria solta, via as grandes obras realizadas (mas não são as obras, que foram muitas, objetos da indagação).

Sendo assim, cabe reafirmar, João Goulart foi deposto do poder. Deposição é uma ação ilegal e imoral, e não assegurada pela Constituição Federal. O atual presidente da República, que foi militar, ainda que venha ignorar os fatos da época, jamais deveria confundir golpe com revolução. Jamais deveria esconder as realidades do país, e nunca encobrir as páginas da história com uma comemoração.

Golpe e ditadura não se comemoram, nem enaltecem, pois a presente Constituição Federal é bastante clara, o país ‘constitui-se em Estado democrático de direito’. Golpe e ditadura são lembrados para que o país não volte a repeti-los nunca mais.”       

Alfredo da Mota Menezes

“Comemorar nos quartéis, nada contra. Mas dizer que não foi golpe e que os militares deram as mãos ao povo que saiu à rua? O povo saiu na Marcha da Família com Deus pela Liberdade porque tudo foi montado pela CIA. Está tudo documentado.

Quem quiser assista o documentário: O dia que durou 21 anos. Está na internet também. Documentos liberados nos EUA mostram como foi feito. Jorrou dinheiro da Cia (Agência Central de Inteligência) para o Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e Ipes (Institutos de Pesquisas e Estudos Sociais).

Nós fomos, militares à frente, miseravelmente manipulados pelos interesses norte-americanos na Guerra Fria. Qual foi a maior vitória da derrubada do Goulart? Não ter ninguém que levantou a seu favor. Porque os norte-americanos compraram mentes brasileiras dando dinheiro a vontade incluindo a mídia. Não houve ditadura com fechamento de Congresso, Supremo Tribunal Federal, mídia, universidades, etc .sob absoluto controle?”

João Edisom

“Quando você está num processo de gestão e não tem o domínio da gestão, você passa a gerar outros problemas para ocupação do tempo. Então assim de forma bem grotesca, o Bolsonaro se preparou para derrotar o PT, se preparou para chegar no Poder mas não se preparou para governar.

É uma pessoa com muita vontade, e pouquíssimo, pouquíssimo conhecimento. E de repente tem um governo todo gerando em torno dele, ministérios, uma casa com 513 deputados federais, outra Casa com 81 senadores, 27 Governos, secretários de Estado, empresas e nessa loucura toda a gente vê nos primeiros dias, coisa inimaginável, um governo que consegue ir no cinema com a esposa, que consegue ir a uma igreja com a esposa, então ele foi buscar uma reafirmação de campanha, que é a mesma história de ‘eu tenho que derrotar o PT’.

Em função disso, o que ele fez? Como ele joga o PT com todos os grupos dentro de um bloco de esquerda, ele foi lá no cemitério e começou a escavar e arrancar ossos. Veja bem, nem os militares, estou falando dos generais, são 17 no Brasil, não teve um general que manifestou a favor dele, nem o vice-presidente, ninguém se manifestou.

O próprio Exército Brasileiro quer esquecer essa história, até porque se algum dia tiverem que voltar ao poder, e acho que não pensam nisso, eles não querem voltar sob os escombros daquilo que aconteceu. Teve momentos desastrosos. Aquela ideia de que ia salvar o Brasil, houve uma empolgação no início, é verdade, mas eles sabem o desastre que foi.

Não foi só um desastre do ponto de vista dos Direitos Humanos. Não podemos ninguém esquecer o João Batista de Oliveira Figueiredo, um general, entregou o Brasil com hiperinflação, sem estrada, toda esburacada, o sistema de saúde na época, lembra das filas chamado INPS? Era um negócio absurdo. O cara levada 10 anos pra pegar o nome dele. Então ele entregou um Brasil aos frangalhos. O Exército Brasileiro sabe disso, houve um conjunto de erros.

A questão é a seguinte: quem quer lembrar de 64? Essa é a grande pergunta. Tirando os transloucados, os extremistas, esse tipo de coisa, ninguém quer lembrar sobre isso. Ele deu um tipo no pé, porque ele feriu justamente os que estão mais perto dele. Distanciado da oposição, e não tem como ser diferente e agora começa a distanciar da situação.

Do ponto de vista histórico, não tem que ficar falando de 64 quem está no Poder. Isso pode ser discutido, debatido nas universidades, que é um debate que não leva necessariamente à tomada de decisões. Quem está no poder tem que governar.

Do ponto de vista histórico, não é papel dele ficar fazendo isso. Do ponto de vista político, é um desastre. Nós temos um conjunto de reformas para ser aprovado, ele foi eleito sim com a maioria do total de votantes mas não representa necessariamente a maioria esmagadora dos brasileiros. Nós estamos falando de um país de 210 milhões de brasileiros e ele teve 58 milhões de votos, então não é nem a maioria do total de pessoas que poderia votar.

Esses cuidados, essa briga contra a imprensa, cerceando a entrada de uns, cerceando a entrada de outros, tudo isso é para criar uma cortina de fumaça para tentar ajustar a governança que ela não está ocorrendo, tanto que hoje temos ministros muito mais fortes que o presidente, dentro de um espaço muito curto, em menos de 90 dias, ou alguém duvida que o Guedes é muito mais forte que ele (Bolsonaro) hoje. O mercado está muito mais preocupado com a permanência do Guedes do que com a governança dele. A área de segurança está muito mais preocupada com a permanência do Moro, do que com a existência do presidente. Então me parece que foi assim, na onda das redes sociais da campanha, vou criar aqui um fato político que as pessoas vão discutir isso e enquanto isso vou a missa e assisto um cineminha.”

Onofre Ribeiro

“O Bolsonaro está mexendo em coisas que não precisava mexer. Em 64 e lá se vão 55 anos, passou, acabou um período. Tem um lado positivo, um negativo e a imagem só quem vai dizer definitivamente será a história e isso vai levar tempo. Então acho que ele estava desocupado naquele momento.

Por outro lado a gente não pode ignorar que o Regime Militar que governou o Brasil de 64 a 85 tem duas vertentes. A vertente política não é a melhor de todas, deixou de haver eleições presidenciais durante 21 anos, deixou de ter eleição dos prefeitos das capitais durante 21 anos, dos governadores durante 18 anos, então houve muita coisa ruim no campo político, incoerência.

Já no campo econômico, os militares acertaram muito mais do que erraram. Vou dar um exemplo: Mato Grosso era um estado abandonado. A única coisa que tinha era a proximidade com Brasília. Os militares fizeram o asfalto ligando Goiânia a Cuiabá, Cuiabá até Santarém, sendo que de Cuiabá pra cima não se chegou a asfaltar. Mas abriu dentro da Amazônia onde não havia nada. Asfaltou a Cuiabá/Porto Velho, trouxe a Universidade Federal para Mato Grosso, trouxe a energia elétrica de Cachoeira Dourada, porque aqui não tinha energia, trouxe a colonização sulista e do Sudeste para cá, ocupou a Amazônia e deu a Mato Grosso um protagonismo nacional que Mato Grosso não tinha.

Então desse ponto de vista econômico e estratégico eles foram muito bem. Mas isso é o passado, e como há muita controvérsia, fico pensando que não tinha que mexer nisso. O Bolsonaro tem esses rompantes de tomar decisão sozinho e depois ele tomar na cabeça. Agora do ponto de vista de Brasil isso não tem relevância nenhuma, os problemas da atualidade são muito maiores do que uma simples comemoração de uma coisa que aconteceu há 55 anos. Na síntese, o país está muito cheio de ‘mimimi’, qualquer coisinha dá discussões enormes por coisas que valem muito pouco.”  




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