• Cuiabá, 13 de Outubro - 2025 00:00:00

Os hábitos e as virtudes

  • Artigo por Gonçalo Antunes de Barros Neto
  • Hoje às 11:31
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No quarto volume da Suma Teológica, Tomás de Aquino desce dos princípios gerais da ação humana ao mapa minucioso das virtudes. Se antes ele havia definido “hábito” (habitus) como uma disposição estável que inclina a potência a operar bem, aqui ele mostra como essa arquitetura interior se traduz em estilos de vida. Não se trata de moralismo, mas de uma antropologia esperançosa: a excelência não é lampejo ocasional, é forma adquirida — e, em certos casos, infundida — que torna o bem algo “connatural”, ou seja, que surge como uma tendência da vontade.

A distinção entre hábitos e virtudes é decisiva. Todo hábito estabiliza; a virtude, porém, estabiliza para o melhor. Por isso Tomás recusa imaginar a vida ética como sucessão de decisões heroicas desconectadas: o ato bom floresce com facilidade quando a pessoa foi educada por práticas, exemplos e leis que treinam o desejo. A virtude é, por assim dizer, uma “segunda natureza”. Não suprime a liberdade; dá-lhe musculatura.

O “Aquinate” (relacionado propriamente ao pensamento de Tomás de Aquino) organiza o tema a partir de dois eixos. O primeiro diferencia virtudes adquiridas e infusas. As adquiridas nascem do exercício repetido sob o governo da razão; as infusas são dom de Deus, ordenando-nos a um fim que excede as forças humanas. O segundo eixo distingue virtudes teologais (fé, esperança e caridade), que nos ligam diretamente a Deus, e virtudes cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança), que estruturam a vida comum. Essa dupla classificação evita um impasse frequente: nem a técnica moral basta para alcançar o sentido último, nem a fé dispensa o aprendizado paciente do agir cotidiano.

A prudência ocupa lugar de leme: não é timidez calculista, é inteligência prática que discerne meios proporcionais ao bem. Tomás insiste que, sem prudência, as demais virtudes se tornam cegas; sem as demais, a prudência degenera em esperteza. A justiça, por sua vez, regula as relações e devolve a cada um o que lhe é devido; nela a caridade encontra campo para se tornar pública. A fortaleza educa o coração a permanecer firme no justo, tanto diante do perigo quanto do cansaço. E a temperança, longe de avareza afetiva, liberta o desejo do cativeiro do imediato para que ele possa desejar mais e melhor.

Nas virtudes teologais, o pensamento tomista ganha altura contemplativa. A fé ilumina a inteligência com a verdade revelada; a esperança orienta o apetite para o bem futuro e difícil — não como otimismo voluntarista, mas como confiança fundada no próprio Deus; e a caridade, forma de todas as virtudes, abre o centro da pessoa à amizade com Deus e, por isso, com o próximo. Aqui se vê a originalidade de Aquino: a moral não é apenas um sistema de freios; é dilatação do amor até que a vida inteira caiba nele.

Ao lado das virtudes, Tomás trata dos dons do Espírito, que não substituem o esforço humano, mas o afinam para uma docilidade mais imediata a Deus. Se a virtude navega a vela do juízo humano, os dons captam ventos mais altos. A santidade, neste quadro, não é um salto mágico, é convergência: hábitos bem-educados, virtudes cultivadas, dons acolhidos.

Há, por fim, um traço discretamente político. Ao insistir que a justiça e a prudência têm dimensões comunitárias, Tomás sugere que uma cidade virtuosa não nasce de decretos morais, mas de instituições que favoreçam a amizade cívica, o aprendizado do bem e a correção dos vícios. Leis, educação, exemplos — tudo constrói ou corrói hábitos.

O volume IV da Suma é, assim, um convite à esperança realista: somos moldáveis. E porque somos moldáveis, somos responsáveis. A tarefa ética não é improviso, é artesanato. Entre o dom e o exercício, entre a graça que eleva e a prática que educa, o “Aquinate” compõe uma partitura onde a liberdade aprende a soar afinada — até que o bem deixe de ser esforço ocasional e se torne, simplesmente, quem somos.

É por aí...

Gonçalo Antunes de Barros Neto (Saíto) escreve semanalmente neste espaço.



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