Correu pelo Brasil e pelo mundo a imagem da ex-jogadora de vôlei que desferiu chicotadas contra as costas do motoboy Max Angelo dos Santos, honesto e trabalhador homem negro e entregador de aplicativos no bairro nobre do Leblon, no Rio de Janeiro.
Já é bem conhecida a clássica teoria de Adam Smith, para quem a mão invisível do mercado autorregularia de maneira espontânea a oferta e a demanda de bens e serviços e o equilíbrio de seus preços, sem que houvesse a necessidade de intervenção do Estado na economia. Sem entrar no mérito do seu acerto ou dos seus equívocos, o que é uma discussão para os economistas, e que não nos cabe neste limitado artigo.
Por outro lado, assim como o mercado seria autorregulado por sua mão invisível, os milhões de negros brasileiros sabem perfeitamente que o chicote que estalou nas costas de Max Angelo foi movido não somente por sua agressora, mas também pela mão invisível e dissimulada do racismo brasileiro, tão presente e que permeia a nossa sociedade desde os tempos coloniais. Por mais que alguns não entendam e ainda acreditem na fábula de que o Brasil é uma democracia racial, a mão invisível do racismo é bem real e existente no cotidiano dos 56% de negros da nossa população.
Como as imagens não mentem, a agressora é quem procura Angelo e outros trabalhadores em seu local de trabalho, e lhes desfere as mais injuriosas ofensas verbais, carregadas com todo seu torpe ódio racista. Despreza o humilde serviço por eles desempenhado, como se por isso pudessem ser menosprezados a uma condição inferior, e como se sua suposta superioridade de moradora do Leblon lhe autorizasse, passa a agredi-los com tapas, chutes e as chicotadas que a memória escravista entende como normais a negros subalternos.
Os torpes costumes normalizados por mais de três séculos e meio de escravidão não são fáceis de serem superados. A canetada da princesa Isabel em 13 de maio de 1888 apenas foi o ato final e culminante de séculos de lutas e insurreições de negros que nunca deixaram de lutar por sua liberdade, e do movimento abolicionista que fervorosamente tomava conta do Brasil pelo fim da escravidão.
E apesar de positiva, a Abolição foi insuficiente e capenga, pois se trouxe o fim formal da escravidão, de outro lado não veio acompanhada da necessária integração dos milhões de negros libertos com os meios que para tanto seriam necessários, e continuaram sendo segregados e discriminados por sua cor, por seu analfabetismo, por lhe serem determinados os mesmos trabalhos de mão de obra barata e sem qualificação, e sem nenhuma indenização e apoio material que lhes desse sustento digno e aos seus descendentes, e foram sendo jogados e abandonados nas favelas distantes que começavam a surgir, em substituição às extintas senzalas.
O invisível racismo nacional então se manifesta silenciosamente, sem autodeclaração segregacionista, mas maldosamente eficiente, estimulando a entrada de milhões de europeus para serem a principal força de trabalho nas lavouras de café, no comércio e na incipiente indústria brasileira, reservando-lhes assim as melhores oportunidades, as melhores carreiras e possibilidades de ascensão, e os melhores salários, e consequentes melhores condições de vida e de suporte à sua descendência, gerações após gerações.
Com o fim da escravidão e o fim, portanto, da possibilidade de se explorar livre e sem custos sua mão de obra, não há mais necessidade de se tolerar toda aquela população negra e miserável; embranquecer a população nacional passa a ser um dos objetivos primordiais e oficiosos do Estado brasileiro, ainda que não expressamente declarado como uma política segregacionista oficial.
E a prova provada dessa intencionada finalidade de escantear a população negra, pode ser observada no Decreto n°528, de 28 de junho de 1890, logo após portanto à Abolição, e um dos primeiros atos normativos da incipiente República, em que já em seu primeiro artigo se declara livre a entrada no Brasil de indivíduos aptos para o trabalho e - grife-se - “à exceção dos naturais vindos da Ásia e da África”.
Política de embranquecimento esta continuada através do Decreto-Lei n°7967, de 18 de setembro de 1945, já na era Vargas, pelo qual deveria ser atendido, na admissão de imigrantes, “à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional”. Para bom entendedor, um pingo é letra em se captar a real intenção por trás da expressão “características mais convenientes da sua ascendência europeia”, ficando muito evidente o racismo entranhado na então legislação do País.
Como tão característico da dissimulação nacional, só faltou àquelas normas estabelecer expressamente que era permitida a entrada, apenas, de trabalhadores europeus, e proibida a entrada de novos contingentes africanos, não mais úteis com o fim formal da escravidão, o que era a intenção mal disfarçada, porém desejada, pela elite nacional.
E assim nós percebemos que nos pouco mais de 500 Anos de nossa Nação, mais eficiente que a mão invisível do mercado, foi sempre a mão invisível e subterrânea do racismo brasileiro, sempre pronta e determinada para estalar o chicote da desigualdade social, do desemprego e do subemprego precarizado e exaustivo, da desassistência, das moradias indignas e sem serviços comunitários básicos, da escolarização deficiente e que não lhes possibilita libertar-se dos grilhões econômico-sociais que lhes são secularmente destinados.
A mão invisível do racismo brasileiro ainda estala forte o chicote diariamente no lombo dos milhões que constituem a imensa maioria da população brasileira. Pelo menos, porém, para provar sua existência, é cada vez mais filmado na era do smartphone. Por isso, o treze de maio não é apenas uma data comemorativa, segue sendo, principalmente, uma data de conscientização e de luta contra um destino tão perverso.
*Wagner Antonio Camilo é promotor de Justiça de Mato Grosso.
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