• Cuiabá, 08 de Julho - 00:00:00

Cuiabá: entre Sísifo e a Fênix  

Em 1727, a recém refundada Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá recebia de Portugal um Brasão de Armas, onde aparecia uma Fênix renascendo do fogo sobre um morro de ouro. Era uma imensa concessão da Coroa: apenas seis cidades da colônia receberam essa regalia.  

A concessão real vinha com uma série de exigências à vila, implantadas pelo então governador da capitania de São Paulo, que aqui chegou "sendo mandado por sua majestade, que Deus guarde, a criá-la de novo". Isso mesmo, a vila, já fundada por uma ata de 1719, era recriada em primeiro de janeiro de 1727. E não foi difícil descobrir que a ata de 1719 fora escrita depois desse ano. A pequena vila perdida nos sertões já dava trabalho (e preocupação) para a coroa portuguesa.  

Mas voltemos ao brasão. A Fênix em questão era a Fênix cristã, um símbolo do eterno renascimento, da eternidade da alma. Já distante do mito africano da ave que juntava suas cinzas a se refazia após uma autoimolação. Só que a ideia não vingou, e foi esquecida pelo resto do período colonial e mesmo imperial. Nosso brasão com a Fênix só foi oficializado em 1961, pelo prefeito Aecim Tocantins. 

Não vingou em termos. Em 1919, o governador-arcebispo-poeta Dom Aquino Correa usou a homenagem portuguesa para criar o brasão do estado de Mato Grosso. Além da Fênix renascendo sobre um morro de ouro, colocou ramos de seringueira e de erva mate, um braço de armadura segurando uma bandeira-machado e a frase "Virtute Plusquam Auro", A virtude acima do dinheiro, que até hoje nos assombra. 

E ficamos com esse mito, e desde sempre Cuiabá vem renascendo, renascendo, renascendo... de vila perdida a motivo de Corrida do Ouro; de cidade inviável a cidade tão dinâmica que ingovernável; de fim de linha a Portal da Amazônia; de capital de meio estado a Capital do Agronegócio. 

A Teoria do Imaginário do antropólogo francês Gilbert Durand (1921-2012) mostra que a dinâmica da reflexão humana oscila entre dois polos: o do Mito Patente e do Mito Latente. É assim que, para contrabalançar o ufanismo patente da Fênix renascida, temos para Cuiabá o mito latente de Sísifo. 

Sísifo "é o mais astuto dos mortais, e também o menos escrupuloso", conforme os livros de mitologia. Por ter passado a perna nos deuses, seu castigo foi terrível: eternamente empurrar uma grande rocha morro acima, só para vê-la descer morro abaixo, e precisar repetir o processo. Repetir, repetir, repetir... 

E descobrimos que Sísifo também nos assombra. De vila florescente à decadência de cidade fantasma; de capital a cidade intermediária até Vila Bela; de cidade baluarte a cidade que espera o trem...  

O fato marcante e indiscutível é que Cuiabá continua a caminhar célere depois de três séculos com muitas histórias para contar. Até por uma posição de ser Centro do continente sul-americano, que ainda busca desenvolver uma política de transportes e integração.  

É nesse contexto de abandono que provoca reações em direção a uma modernidade salvadora que temos a Cuiabania sem-acento-agudo do poeta Silva Freire, uma postura que define a cidade como "Rurbana", vivendo mais uma experiência-histórica-do-tempo, do que uma experiência-geográfica-do-espaço. E depois a terna Cuiabanidade de Lenine Póvoas, postura que lembra o samba de Noel Rosa: a cidade "não quer abafar ninguém, só quer mostrar que faz samba também", e rasqueado e lambadão.  

E finalmente a Cuiabania da Poética Popular da Arquitetura, de Júlio De Lamonica Freire, sentido ensimesmado que nos leva, nos momentos de aparente estagnação, a procurar as raízes da cidade, redescobrindo seu caráter, retomando e recriando suas tradições. E vamos navegando pelas águas ainda fortes do Rio Cuiabá, e pelas águas fantasmas do córrego enterrado da Prainha. Oscilando entre a Fênix esfuziante e o eterno esforçado Sísifo.              

Um momento Fênix muito expressivo foi quando sediamos as duas Feiras Sul-Americanas do Livro (Literaméricas), em 2005 e 2006. Esquecemos o tal do Mercosul e nos posicionamos como o Coração da América: todos os países do continente aqui se reuniram. Outro momento foi o dos quatro jogos da Copa do Mundo Fifa 2014, quando o mundo viu Cuiabá como cenografia do futebol. 

O trem, e agora o VLT, continuam testando nossa índole de Sísifo. Levamos essa pedra pesada para cima do morro, e ela teima em escorregar. Talvez falte o trilho...  No fundo, Cuiabá se estrutura nessa bonita parceria do insistente Sísifo, nossa índole guerreira, e a esotérica Fênix, nossa característica mágica. Podemos lembrar outros momentos de um e de outro dos mitos, essa é nossa história.  

Parabéns, Cuiabá! Vamos para os próximos trezentos anos. Este artigo é uma síntese de parte da tese de doutorado em Estudos de Cultura Contemporânea (UFMT), orientada pelo Dr. Mário Cesar Silva Leite, defendida em 2019. 

 

Gabriel de Mattos é arquiteto, professor universitário e membro da Academia de Arquitetura e Urbanismo de Mato Grosso (AAU-MT).



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