• Cuiabá, 03 de Dezembro - 00:00:00

O papel da mulher no século 21

Reporto-me ao tempo entre os meus 10 e 18 anos em que algumas vezes ouvia minha avó materna “conversar com seus botões” e ao pensar alto dizia: “É! O mundo não é mais o mesmo!”.

Ela, nascida em 1914, sempre dizia isso mediante alguma situação que se apresentava e que geralmente lhe parecia fora da normalidade ou não aceitável para o seu contexto vivido, enquanto mulher, mãe de nove filhos, dos quais seis mulheres e três homens; esposa fiel e dedicada, semianalfabeta, com dedicação exclusiva ao lar e que trazia sempre um sorriso na face, independente das circunstâncias que enfrentasse. Percebeu que o que foi estava se reproduzindo nas filhas, exceto em duas que ao invés de se casarem, constituírem famílias cedo, resolveram estudar, tornarem-se profissionais. Também acompanhou isso tudo em relação às muitas netas que teve.

Depois a minha mãe, nascida em 1945, que seguiu os ensinamentos dos seus pais, mas que conseguiu aos 18 anos concluir o ginasial, portanto a antiga e já substituída oitava série (hoje o nono ano do ensino fundamental).  Almejava trabalhar e crescer na vida. Teve seu sonho interrompido ao apaixonar-se e casar-se com meu pai ainda aos 18 anos, passando a partir daí a dedicar-se exclusivamente ao esposo, ao lar e aos seis filhos que vieram igual escadinha; como ela diz, um atrás do outro. Embora tivesse seguido o rigor da criação que recebeu (sempre dizia e às vezes não precisava falar nada, bastava olhar: “escreveu não leu o pau comeu”), na nossa apresentou um diferencial: dizia aos seis filhos (três meninos e três meninas), que tínhamos que estudar para sermos alguém na vida. Para as meninas em particular, com muita ênfase, para que estudássemos e ter seu próprio sustento e não vir a depender de homem nenhum, pois isso impedia até de falar o que desejasse ou ser realmente o que se era. Seguimos essa orientação.

Eu como primogênita nascida em 21 de março de 1964, período conturbado no país, dediquei-me aos estudos e aos 16 para 17 anos estava ingressando no curso superior, após ter feito Estradas, um curso técnico considerado apenas para os meninos, o qual, inclusive foi considerado um absurdo, uma afronta pelo diretor da ETFMT, um coronel, o fato de eu não ter cedido aos seus “conselhos” e continuar fazendo o curso e não o indicado por ele como o mais apropriado para meninas que era o de Secretariado. Já em sala de aula na condição de professora e fazendo concomitante o curso de Pedagogia (chamado popularmente pela classe estudantil de curso das caça-maridos), ingresso de imediato no Movimento Estudantil, criando o Centro Acadêmico de Pedagogia e tornando-me a primeira presidenta; e na sequência, já com 19 anos, casada, mãe de um filho, ingresso-me também no Movimento Sindical, fazendo parte da diretoria do Sintep e na CPB (Confederação dos Professores do Brasil), representando a base.  

Por perceber mais nitidamente as injustiças, as desigualdades e a não garantia de direitos básicos, percepção esta instrumentalizada pelo ensino e pela militância, isso exigiu uma tomada de postura, de ação, de construção individual e coletiva; conduzindo-me, inclusive, a uma ampliação de atuação em diversos espaços e funções: em partidos políticos e do parlamento ao executivo, do municipal ao federal.

Exponho aqui brevemente o processo de mulheres de três gerações, que penso expressar em parte o que ocorreu com cada uma de nós, guardada as devidas proporções no tocante a essa questão de gênero relacionada com os papéis sociais, que variam, conforme o sexo da pessoa (aspecto biológico) e que se reportarem para a questão gênero (feminilidade ou masculinidade), enquanto comportamentos e identidade impingem prejuízos à figura feminina.

O fundamental é entendermos que embora as diferenças sexuais tenham sido valorizadas ao longo dos séculos pelos mais diferentes povos em todo o mundo, essas questões ditas de menino e de menina, de homem e de mulher, podem variar temporal e historicamente, de cultura em cultura, conforme convenções elaboradas socialmente, como nos diz Paulo Silvino Ribeiro, doutorando em Sociologia pela Unicamp.

Aqui no Brasil particularmente falando, onde as mulheres sofriam e sofrem as consequências do preconceito e do status de inferioridade, a partir do recrudescimento do movimento feminista no início do movimento contracultura em meados do séc. 20 é que se conseguiu avançar em algumas questões e inclusive vir a conquistar, por exemplo, o direito do voto em 1932 e a quebra de alguns tabus relacionados à sexualidade e ao divórcio.

De lá para cá, cabe registrar a importância das conferências locais, estaduais, nacionais e internacionais, em que pese determinados momentos julgarmos ter pouca efetividade, em termos de alcance de seus objetivos, que motivaram à participação das mulheres em sua diversidade e a cada conferência foi sendo mais ampla e substantiva.

Destaco aqui as mulheres negras que tiveram essencial relevância de incidência na agenda dos direitos humanos das mulheres, bem como no enfrentamento ao racismo. Os tensionamentos provocados pelas mulheres negras, especificamente no Brasil, desvelando as dinâmicas do racismo inscritas na composição das questões que singularizavam os direitos humanos das mulheres, foram fundamentais para a integralização das dimensões de gênero e raça nas demais agendas importantes do país, associadas, por exemplo, à demografia, desenvolvimento sustentável, segurança e paz, habitação, entre outras.

Temos que considerar ainda as novas tecnologias que facilitaram os serviços domésticos, disponibilizando mais tempo às mulheres, oportunizaram condições mais favoráveis para que elas se inserissem no mundo do trabalho e se preparassem e se qualificassem para as diversas funções e ramos de atividade, ocupando espaços que até então eram exclusivos ou predominantemente dos homens. E essa mudança no papel da mulher evidentemente conduz a uma mudança, nada fácil, no papel e no comportamento do homem, que na verdade precisa aprender a conviver, a compartilhar esses espaços com as mulheres.

A mulher do séc. 21, embora tenha mais escolaridade, tenha conquistado certa autonomia, liberdade de expressão - de ideias e posicionamentos, emancipação do seu corpo, deixando de ser coadjuvante para ser protagonista de sua própria história, com novas liberdades, possibilidades e responsabilidades, não ficando restrita ao lar, mas assumindo inclusive comandando de cidades, estados e país; dirigindo empresas, universidades, delegacias, tribunais; estando nas câmaras, assembleias e espaços na administração pública, reconhece que apesar de tantas mudanças, muito há por se fazer e avançar para superar as desigualdades.

Não há igualdade de salários, mesmo que desempenhem as mesmas funções profissionais, ainda havendo o que se chama de preconceito de gênero; a mulher ainda acaba por acumular algumas funções domésticas assimiladas culturalmente como se fossem sua obrigação e não do homem – funções de dona de casa. Da mesma forma, infelizmente, a questão da violência contra a mulher continua sendo um dos sérios problemas a serem superados, embora a “Lei Maria da Penha” signifique um avanço na luta pela defesa da integridade da mulher brasileira.

 Como nos diz uma jovem em entrevista à pesquisa da jornalista Marina Martini Lopes acerca da mulher no Séc. XXI: “Ser uma jovem mulher hoje é poder ocupar lugares no mundo acadêmico e no mercado de trabalho; mas ainda presenciar e viver na pele situações que parece não acontecer com os homens. É usar a roupa que bem entender, mas ouvir questionamentos a respeito, às vezes vindos até mesmo de outras mulheres. É conversar com mães e avós para fazê-las repensar padrões e comportamentos enraizados. É encontrar a abordagem certa para ter esse mesmo tipo de conversa com pais, avôs, tios - e mesmo com irmãos mais novos, que ainda estão dando os primeiros passos no mundo fora do convívio familiar. É sentir medos e desconfortos que às vezes, de tão familiares, acabam passando despercebidos. É ser tachada de louca de vez em quando”.

De fato o mundo não é mais o mesmo. Vivemos em novos tempos. Contudo, avanços à parte, é preciso que se diga que as questões de gênero no Brasil e no mundo devem sempre estar na pauta das discussões da sociedade civil e do Estado, dado a importância da defesa dos direitos e da igualdade entre os indivíduos na construção de um mundo mais justo.

A Câmara Setorial Temática da Mulher da Assembleia Legislativa de Mato Grosso e a Comissão da Defesa da Igualdade Racial da OAB/MT vêm dando a sua contribuição nesse sentido como as demais instituições e organismos.

Enfim, que tenhamos força, coragem, ousadia, fé e amor para resguardar o que for bom e mudar o que for perverso, injusto, desumano!

 

Prof.ª Jacy Proença é Graduada em Pedagogia; Pós em Ciência Política e Gerência de Cidades; Militante dos movimentos negro e de mulheres. Preside a Câmara Setorial Temática da Mulher na ALMT; Conselheira da Comissão da Defesa da Igualdade Racial da OAB-MT e aprovada para a Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil-Cadeira 682.



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