O filósofo camaronês Joseph-Achille Mbembe desenvolveu com maestria a ideia de necropolítica1, em que questiona e denuncia a soberania estatal, quando, de forma oculta ou dissimulada, adota políticas públicas complacentes com a desvalorização da vida humana.
Esse conceito pode ser muito bem adaptando à hermenêutica jurídica, onde muitos intérpretes formulam pensamentos e conclusões complacentes com a destutela e desvalorização da fonte de todos os direitos, a vida. É a necro-hermenêutica, que banaliza a morte violenta em prejuízo da vida, com interpretações laxistas, lapsas e relapsas em benefício de quem atacou o maior de todos os bens jurídicos.
Todos sabem – ou deveriam saber – que o direito humano supremo é a vida. É o alfa e o ômega de todo e qualquer interesse ou direito das pessoas.
A razão de ser e de existir de qualquer sistema jurídico repousa no primado do direito à vida. É o vidacentrismo. A vida como o centro de todo o ordenamento jurídico.
Por isso, é dever de todas as pessoas, da família, da sociedade e do Estado assegurar, proteger e reafirmar o direito à existência, em sua integralidade. O sistema jurídico deve orbitar em torno do sol vida.
A vida, então, merece tutela integral nos âmbitos da moral, dos costumes, da filosofia, da teologia, do direito e de todos os ramos dos saberes humanos.
Na esfera jurídica, reclama proteção integral do poder público, pelas vias legislativa, executiva e judiciária. Não há espaço para proteção deficiente (desproteção total ou parcial). É preciso, é necessário e é imprescindível que haja proteção integral do direito de viver.
O direito à vida é inviolável, segundo a Constituição Federal. Não à toa que o Código Penal abre sua parte especial com sua proteção, ao tipificar o crime de homicídio.
Georg Hegel, em sua destacada obra2, ensina que o crime viola a lei e, por isso, deve ser reafirmada pela sanção penal. Noutras palavras, se o crime é a negação do direito e a pena é a negação do crime, a pena reafirma o direito violado.
Isso significa dizer que a impunidade nos crimes dolosos contra a vida importa em dupla negativa do direito de viver.
Não há palavras vazias na lei e muito menos na Constituição Federal. Ao prever a competência do Tribunal do Júri para julgar crimes dolosos contra a vida, restou estabelecido que essa forma de julgamento consiste em uma garantia ao direito à vida, colocada à disposição da sociedade. O Tribunal do Júri se apresenta como instituição-garantia do direito à existência3. Não é – e jamais poderá ser! - escudo ou fonte de impunidade para quem o atacou.
Em um Estado que pretenda ser Democrático de Direito e minimamente civilizado, não há espaço para fixação de hermenêutica jurídica compromissada com a impunidade de assassino (necro-hermenêutica). Se não for assim, estar-se-á destruindo todo o sistema jurídico vidacêntrico.
Nessa linha, fica muito claro que a vedação de recurso ao Ministério Público contra veredictos absolutórios injustos, quais sejam, aqueles que não encontram respaldo nas provas do processo e no ordenamento jurídico (artigo 386 do CPP), consiste em interpretação contrária ao espírito do sistema jurídico.
Embora o jurado, como detentor do poder soberano, possa muito, ele não pode tudo. Soberania não é sinônimo de onipotência ou arbítrio. Absolvição por motivos extralegais, e até amorais, devem ser repudiados dentro de um Estado Democrático de Direito. Absolvição por sexismo, racismo, autoritarismo, coitadismo etc., à custa do sangue alheio (direito à vida), é decisão odiosa que não encontra amparo nas noções mais básicas de uma sociedade civilizada.
Vale dizer, tanto a condenação como a absolvição deve encontrar base nas provas do processo e estar em consonância com o ordenamento jurídico.
Logo se vê que as decisões monocráticas do Min. Celso de Mello, exaradas nos habeas corpus 117.076 e 185.068 são anticonstitucionais, ajurídicas e incivilizatórias. Com todo respeito, expressa claro exemplo de necro-hermenêutica. Negar recurso ao Ministério Público contra absolvições de assassinos divorciadas do conjunto probatório e da ordem jurídica viola a necessária e imprescindível proteção integral do direito à vida.
A conclusão é clara. Muitos invocam direitos humanos para conter a "sanha punitivista" estatal. Mas, propositalmente, se esquecem da fonte de todos os direitos humanos, a vida. O direito à vida merece proteção integral de todos. Negar recurso ao Ministério Público contra absolvição injusta de assassino é professar a necro-hermenêutica, interpretação que esvazia cadeias e lota cemitérios, com o menoscabo do direito à vida. E isso é inadmissível!
Não é possível aceitar o inaceitável! A soberania do povo ou a legitimidade do judiciário não tem o poder para neutralizarem a doutrina integral da proteção da vida humana.
Afinal, todo litigante em processo judicial tem assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (artigo 5o, LV, CF). E a vida tem o direito de ser integralmente protegida. Soberania não é sinônimo de irrecorribilidade. Não se pode tolerar o compromisso com o erro jurídico para favorecer assassino. A vida vale mais e a necro-hermenêutica deve ser identificada, censurada e repudiada em um país civilizado, que se classifica como Estado Democrático de Direito.
César Danilo Ribeiro de Novais é Promotor de Justiça do Tribunal do Júri e autor do livro "A Defesa da Vida no Tribunal do Júri".
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