• Cuiabá, 21 de Novembro - 00:00:00

A Criminalização do Protesto

A sala estava devidamente limpa, com as carteiras organizadas em círculo, de modo que cada um de seus ocupantes pudesse olhar o companheiro e acompanhá-lo ao falar. Exatamente da maneira que o Luiz gostava que elas estivessem. Pois assim, segundo ele, seus alunos pudessem ter melhor aproveitamento. Era o que mais lhe importava. Mesmo diante das dificuldades, uma vez que dependia de uma série de fatores, entre as quais o tamanho da turma e do próprio espaço. Este, infelizmente, não fora adaptado ao formato de teatro antigo, cujas fileiras de lugares estão postas em círculos, com o tablado lá embaixo. “Este sim, modelo ideal” – chegou a defender por vezes, embora suas palavras não tivessem o eco desejado, nem nos corredores, com sua boa acústica, daquele bloco de três pisos, espremido entre outros de comprimentos variados, sem ligação alguma entre si, a não ser o enorme pátio todo de cimento, desguarnecido de árvore, com o verde que deveria ter pelo cinza que, tal como erva daninha, dominava o ambiente.  

Luiz apressou os passos. Fizeram o mesmo quem se encontravam por ali. Àquela hora da manhã, o calor já se encontrava bem forte. Daí a pressa. Faltava meia hora quando Luiz e dois ou três de seus alunos subiram os degraus de acesso ao bloco, andaram por mais alguns metros, nova escada, e, por fim, o corredor. Caminhavam e conversavam. Os assuntos eram diversos. “Nada importantes” – diria alguém que os escutara ao cruzar-lhes o curto espaço. Talvez, até ensaiasse um sorriso desdenhoso, a exemplo da estranheza de algumas pessoas diante das cenas do filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, que são casadas, conectadas ao diálogo do professor com seus alunos. Diálogo que vai além do momento em que foram filmadas (1989), ainda que se possa achar, e isto é possível, que teve uma passagem pelo pretérito, sem, contudo, ficarem presas ao final da década de 1950, quando havia toda uma discussão sobre direitos humanos.

Os discursos de Martin Luther King Jr (1929-1968) já eram bastante conhecidos. Ainda que não aceitos por todos. Isto é compreensivo. Afinal, toda sociedade é plural. Sempre a fora. Sempre a será. E, desse modo, é comum que setores dela têm posicionamentos distintos sobre algo, ou situação, ou alguma coisa. Comum e salutar. Próprio do viver em democracia. Vida que não se dá apartada da liberdade. Esta, aliás, é o seu próprio alicerce, e onde são assentados os tijolos de sua construção, cuja argamassa não é outra coisa senão o respeito pelas diferenças e pelos diferentes. O referido filme também fala sobre isso, além é claro, do papel do professor em instigar seus alunos a descobertas. Descobertas a partir de suas próprias inquietações. Inquietações, liberdade e descobertas formavam o tripé norteador das conversas com que Luiz mantinha com quem o rodeavam.

Conversa que se estendeu ao longo do corredor, e não foi cessada porque eles chegaram à sala de aula. Cada um deles buscou o seu lugar. Depois de acomodados, em círculos, em volta de Luiz. A conversa de antes era mantida. Afrânio, Beatriz, Carlos, Jô, João, Joana, Joaquim e Maria estavam em uma fase bastante diferente, e se orgulhava disso. Pois quase já tinham se soltado das amarras. Não de todas. Ainda restavam algumas, cujas raízes prendiam as próprias entranhas, a exemplo do preconceito. Preconceito que alimenta a intolerância. Intolerância, tal como cancro, corrói e mata a democracia. Eles sabiam disso. O que os levavam a travar enorme luta para se libertarem do fundo da caverna, onde as sombras do mundo lá fora são tidas como realidades. Rompida esta etapa, viria a escalada e, feito esta, a tão sonhada saída. Novo desafio os aguardava, a claridade do Sol. Mas, enfim, estavam dispostos a enfrentá-la, ainda que tenham de enfrentar a nuvem cinzenta provocada por projetos que tentam criminalizar o direito a liberdade de protestar. É isto.

 

Lourembergue Alves é professor universitário e analista político. E-mail: Lou.alves@uol.com.br.   



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