Àquela hora de sábado, costumeiramente, a sorveteria ficava sempre lotada. Não fora diferente naquela noite. Era o início da estação das flores e da alegria. Atraídas, pelo aroma primaveril, pessoas saíram de suas casas. Muitas delas se dirigiram ao “point” do lugar. Estava longe para ser o único, mas, com certeza, o mais procurado. Acomodavam-se em grupos não uniformes. Cada uma delas tinha a frente taça com duas, ou três ou até mesmo quatro bolas de sabores variados. Bem perto de suas mãos, refrigerantes, geralmente em garrafas de dois litros. Ao se tocarem a borda das taças, as colheres produziam um curto e seco barulho, que se somava a outro, o dos copos que volta e meia batiam a mesa em aço com pintura eletrostática. Tinha-se a sensação de uma melodia que, embora de baixa tonalidade, estava longe de ser ofuscada pelas vozes. Vozes que se misturavam, entrelaçavam, quase a uma onda arrebatadora da taciturnidade, que margeava o ambiente. Falavam sobre futebol, filmes, crises econômicas e até conjugais.
Nenhum destes assuntos era tratado com racionalidade, reflexão e o confronto de ideias. Sobressaia-se, então, o “achismo”. Toada de uma nota só, feita em um violão de corda única, à moda de João da Praia que fizera sucesso meteórico com a música “O boi vai atrás” (“aonde a vaca vai”), em 1974. Cantor que logo caiu no ostracismo, incapaz de se levantar, nem mesmo com a tal da “Formiga Cabeçuda”, outra de suas canções. Esqueceram-no com a mesma rapidez com que o puxaram para a cena. Cena que se misturava as demais, em um ambiente amarrado pelo proibido, pelo censurado, ainda que monitorado pelo marketing governamental, movido pelo “ame-o, ou deixe-o”.
Fazia-se a revisão do passado que jamais careceu de ser revisionado. Justamente como agora, quando se desdenha o científico, ignora a história e faz da versão, o próprio fato, com o fim de prevalecer os desejos dos “novos donos do poder”. Sem contestá-los, “porque senão”, ao contrário do que diz a música de Chico da Silva (“ela chora e diz que vai embora”), o contestador, o questionador será excluído, acusação de não ser patriota. Pois reina o impedimento, e não o viver em ritmo do “Proibido proibir”, uma vez que, lá fora, eles o esperam. Ainda que “os automóveis” não “ardem em chamas”, sem “derrubarem as prateleiras, as estantes, as estátuas, as vidraças, louças, livros, sim...”
Isto tudo pouco, ou nada importa. Relevante é o que dizem os atuais “senhores do poder de mando”, embora nada saibam a respeito do dito, nem como devem falar, em meio à discussão sem importância, recheada de acusação aos que se foram. Ai de quem ouse falar alguma coisa que os contrarie. Pois, ao criticá-los, sentem-se na própria pele as garras inimigas. Foram proscritos. Perderam também o emprego. A conquista de outra colocação, talvez em melhor condição, não fora a possibilidade de todos. Mas os que conseguiram, tornaram-se mais críticos do que tinham sido antes, para desespero de quem provocaram suas primeiras perdas, ainda que não revelado, mas sentido pelos torcedores destes últimos. Torcem tanto. Mais tanto que não conseguem ver o óbvio, nem a própria condição de cegueiras e de surdes que se encontram. A visão e audição se foram juntamente no instante em que igualmente desapareceu o paladar. Por isso, o gosto do sorvete de sabores variados se perdia no vazio deixado pelas labaredas que consumiam a Amazônia, bem como pela moto-serra que derrubava a árvore de lei. De novo o silêncio. Um silêncio natimorto. Tão forte que solapa o primaveril da liberdade. É isto.
Lourembergue Alves é professor universitário e analista político. E-mail: Lou.alves@uol.com.br.
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