• Cuiabá, 01 de Junho - 2025 00:00:00

OS Silvério

Hoje cedo, dia de descanso, Silvério se acomodou a cadeira, acionou a tecla do computador, como poderiam ter sido as teclas do controle remoto da TV, e abriu o filme anunciado, e porque não desejado, pois se viu tentado, atraído em razão da massificação do anúncio, inclusive pelas redes sociais. Tão logo a primeira cena apareceu, ele já se mostrava todo impaciente. Contorcia de um lado e de outro, esfregava as próprias mãos e piscava o olho direito ininterruptamente. Gestos que lhe eram quase rotineiros, em especial quando se dispunha a assistir a um programa ou a ouvir o que o outro tinha a dizer. Até ousava a pegar uma revista, jornal ou um livro, mas, depois da primeira página, fechava-os em movimento brusco, embora o seu facebook e seu instagram encontrassem repletos de frases de autores famosos. Escritores que, para dizer a verdade, nem mesmo os conhecia.

Conhecer, aqui, no sentido de lidos, não no de tê-los vistos fisicamente. Mas havia, em suas postagens, menção a títulos de clássicos tanto da literatura nacional quanto internacional. Mas, claro, negava a si próprio degustar, ouvir o barulho melódico do passar das páginas e sentir o doce cheiro de obra alguma. Sequer se dava ao luxo de folheá-la com cuidado, e corria do que era reflexão e análise. Preferia apenas a copiar e a colar as frases soltas pelas redes sociais. Optou-se, então, a imitar o jeito de ser do personagem machadiano Luís Tinoco, em “Aurora sem dia”, que “não era homem que meditasse uma página de leitura”. Ia logo “atrás das grandes frases, demorava-se nelas, repetia-as, ruminava-as com verdadeira delícia”.

Amava repetir trechos que ouvia, não se importando com o que eles de fato diziam. Recusava-se a ser de outro modo. É de se notar de antemão que Silvério não assistiria ao filme. Não todo ele. Mal iniciara a primeira cena, e ele já passou a mão direita sobre o mouse e apressou as sequenciais. Faria o mesmo com o controle remoto se estivesse à frente da TV. Foi direto para o final do filme. Ainda assim, dois ou três minutos finais. Deliciou-se com ela. Narrou-a, entusiasmadamente, para os amigos. Repetiu-a em demasia com quem encontrava, e o fazia parar pelas calçadas a caminho do trabalho. Não satisfeito, espalhou-a por suas redes sociais. Escondeu, porém, o fato de ter se recusado ao trabalho de assistir todo desenrolar da história contada pela fita cinematográfica.

 Mas isto, leitor (a), está longe de ser o real problema. O problema real é bem outro. Existem muitos, mas muitos Silvério. Espalham-se rapidamente. E são centenas. Ah!... Talvez até milhões, e dominam as redes sociais, pousando de sabichões, conhecedores de um tudo, e refutam sem pestanejar quaisquer dados científicos, ainda que seja de institutos ou centros de ciências. Recentemente, contestaram os índices do desmatamento apresentados pelo INPE. Veja só! Dias depois, passaram a negar a existência de focos de queimadas pela Amazônia, mesmo que suas consequências possam ser sentidas por idosos, crianças e obesos. E, para completar, andam dizendo que as ONGs e os “esquerdistas” são os responsáveis pelo fogo contatado por imagens televisivas e por satélites. Fazem isto para desestabilizar o governo, e estimulados por governantes estrangeiros. Antes, os culpavam por terem “destruídos” o país; agora, os acusam de tentarem “paralisar” a administração atual.

Santa imaginação! Que coisa! Roteiro de um livro ou de um filme macabro. Resta saber se os Silvério irão se dar ao trabalho de assisti-lo ou lê-lo depois de pronto. E, enquanto titubeiam-se, valem duas perguntas: Até quando se recusarão a enxergar o óbvio? Até quando irão buscar desculpas para o indesculpável? É isto.

 

Lourembergue Alves é professor universitário e estudioso do jogo político.

E-mail: Lou.alves@uol.com.br.      



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