• Cuiabá, 24 de Setembro - 2025 00:00:00

Sonhar grande em um mundo que exige permissão para existir


Paulo Lemos

Há lugares onde o futuro é um pedido protocolado na portaria. Antes de sonhar, é preciso provar endereço, cor de pele, escola de origem, sobrenome, CEP. 

A ambição vira um gesto suspeito, e o desejo de atravessar o limite — estudar onde “não é pra você”, ocupar cargos onde “ninguém como você chegou”, criar quando “o mercado não pede” — vira caso para sindicância moral. 

Sonhar grande, nesse mundo, não é delírio nem luxo: é um ato de sobrevivência.

O policiamento do sonho começa cedo. Está nas piadas que “colocam cada um no seu lugar”, nos conselhos que disfarçam medo de fracasso com prudência, nas burocracias invisíveis que cobram uma senha que ninguém recebeu: “realismo”. 

Para quem nasceu longe do centro, qualquer horizonte mais longo vem com pedágio. Ao pedir “permissão” para existir, você aprende a negociar seu próprio tamanho: fala baixo para não incomodar, escolhe menor para caber, recebe menos para agradecer. 

O resultado é conhecido: uma sociedade com talentos subempregados, inteligências em espera, potências que nunca chegam a ligar.

É por isso que sonhar grande precisa deixar de ser pauta individual para virar política pública. Não se trata de slogans motivacionais; trata-se de infraestrutura para a imaginação. 

Sem escola que desafie e acolha, sem internet que não caia, sem transporte que encurte distâncias, sem editais que não sejam loteria, sem crédito que não esmague, o sonho vira cobrança cruel. 

Com esses pilares, o sonho deixa de ser exceção heroica e vira possibilidade comum. Povo que sonha com condições sonha com o pé no chão — e por isso mesmo alcança mais longe.

Também é preciso desmontar a pedagogia do “não é pra você”. Ela se disfarça de cuidado, mas é controle: quer poupar do tombo quem nunca foi autorizado a escalar. O antídoto é construir contextos em que a audácia não seja punida. 

Professores e escolas que tratem ambição como exercício de cidadania; empresas que façam diversidade sair das fotos e entrar nas decisões; gestores públicos que julguem políticas pelo número de sonhos que tiram do modo avião; mídia que mude o enquadramento, trocando o vício da tragédia repetida por narrativas complexas que preservem a dignidade. 

Não é romantizar a realidade — é negar-se a reduzi-la.

Mas há um fundamento ainda mais radical do que o próprio sonho: a autenticidade. Ser verdadeiro — não a versão “aceitável” que o mundo quer de nós — é talvez o ato mais ousado que podemos praticar. 

Autenticidade é recusar o papel emprestado, é não se enquadrar para caber no cabresto do costume, é não aceitar o adestramento das expectativas alheias. 

Integridade é o passo seguinte: ser inteiro. Alinhar o que pensamos, sentimos, dizemos e fazemos; reconciliar partes que a sociedade fragmenta; viver sem prisões físicas, mentais ou espirituais. 

Quando nos autorizamos a simplesmente ser quem somos, passamos a viver livres — do nosso jeito — e a fluir como o rio, como o vento, como as estações: mudando sem perder a fonte, movendo-nos sem pedir licença à tempestade do alheio. 

Esse compromisso com a verdade de si não é capricho individualista; é responsabilidade pública. Pessoas inteiras erguem comunidades menos cínicas, instituições mais honestas e políticas menos performáticas.

Autenticidade não significa fazer tudo o que se quer, mas não trair o que se é. Às vezes, isso pedirá dizer “não” ao caminho rápido, recusar a imagem que rende aplauso, suportar o desconforto de divergir. 

Integridade é admitir limites e corrigir rota quando for preciso — sem abandonar a bússola. 

Em um país habituado a punir quem desafina do coro, sustentar essa inteireza é um gesto de libertação: livra o sujeito da clandestinidade emocional e a sociedade do teatro da conformidade.

Há também um trabalho íntimo e cotidiano. Sonhar grande num mundo que exige permissão é aprender a negar autorizações que só servem para nos encolher. 

É mudar de frequência quando a transmissão oficial repete que “seu lugar é esse”. É trocar o medo herdado por responsabilidade criativa: o que farei com a liberdade que insisto em conquistar? 

Não é simples — é disciplina de quem deseja com os dois pés no chão e os olhos no horizonte. E, sim, vai haver tropeço. 

Errar, nesse jogo, não é prova de que desejamos demais; é parte do caminho de quem se recusa a viver por procuração. A regra é simples e exigente: verdade no peito, inteireza na prática.

Se a pergunta é se vale a pena sonhar grande quando a vida nos pede crachá para existir, a resposta não cabe em estatísticas, frases prontas ou moral de novela. 

Cabe em um princípio que deveria ser inegociável: ninguém precisa de licença para imaginar-se maior — nem para ser quem é. O que precisa de licença — e fiscalização — são as estruturas que decretam quem pode sonhar e quem deve pedir desculpas por tentar. 

O resto é coragem organizada: gente comum reivindicando o direito de não caber, instituições abrindo espaço para essa desobediência criativa e um país inteiro aprendendo que não há nada mais realista do que tratar o sonho — e a autenticidade — como bens públicos.

Quando esse princípio enfim se instalar, não pediremos mais “permissão” para existir. Apenas existiremos — com a altivez tranquila de quem sabe que desejar e ser não é insolência, é dever. 

Até lá, que a nossa ambição não peça desculpas e que a nossa verdade não peça perdão. Que peçam passagem.

 

Paulo Lemos é advogado em Mato Grosso.

paulolemosadvocacia@gmail.com




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