Paulo Lemos
A democracia tem rosto e memória. Quando tentam mascarar seu rosto com o véu da “prerrogativa” e vender silêncio como “pacificação”, não se trata de técnica: é puro truque.
A chamada blindagem busca algo elementar e perigoso — que o próprio clube decida se abre as portas do fórum.
É colocar a chave da justiça no bolso do réu. Imunidade serve para a função respirar; impunidade, para a pessoa se esconder. Uma preserva a política; a outra, apodrece a República.
Inventaram também a pressa seletiva. “É urgente.” Urgência é palavra nobre quando a vida sangra; no Parlamento, tornou-se senha para apagar holofotes.
Pulam-se etapas, encurtam-se debates, corre-se com a pauta enquanto o país ainda lê a primeira linha. Urgência não é mérito; é velocidade no escuro.
No outro flanco, a anistia ampla chega embrulhada em vocabulário de reconciliação. Quem, em sã consciência, seria contra a paz? Mas paz sem verdade é silêncio mercadejado.
Virar a página não é rasgar o livro. Chamar de “manifestação política” o que foi agressão às instituições é confundir vela e pedra, sermão e estilhaço — e depois pedir aplausos.
Liberdade de expressão é alicerce; ataque à ordem democrática é ruptura. A primeira merece proteção; a segunda, resposta firme. Anistia que não distingue entre elas é conceder feriado em homenagem a quem tentou arrombar a porta da casa comum.
Há uma pedagogia cruel em curso. Quando o topo aprende a se blindar, a base desaprende a acreditar. “Não dá em nada” é o solvente mais corrosivo que existe: dissolve filas, orçamentos, sinais vermelhos, contratos e, por fim, a confiança.
A lei que chega turva e negociada lá em cima evapora antes de chegar ao chão. E nenhuma aula de cidadania resiste ao exemplo que desmente a teoria.
O caminho republicano é simples e exigente: voto aberto e nominal quando se trata de responsabilização; processo sem porteiro corporativo — em que o juiz bate, entra, investiga, acusa, defende e julga, sem pedir licença ao crachá; e, ante os ataques à democracia, três passos indelegáveis: verdade, julgamento, responsabilidade.
Perdão não apaga crime; perdão reconstrói, mas apenas depois que a verdade assentou o terreno.
Não se trata de moralismo — é pura engenharia institucional. Sistemas perduram quando cada peça conhece seu limite. Parlamentar tem palavra protegida, não conduta blindada. Cidadão tem voz garantida, não salvo-conduto para depredar o que é de todos.
A liberdade de um termina onde começa o direito alheio. Trocar transparência por proteção sempre seduz: oferece conforto imediato e hipoteca o futuro. Mas país não se sustenta sobre truques — edifica-se sobre caráter, repetido nas pequenas e grandes escolhas.
Almejo o dia em que poderemos dizer a uma criança, sem hesitar, que a fila vale porque o deputado também espera a vez; que protesto é legítimo, mas quem ultrapassa a linha responde; e que uma assinatura pública tem peso porque quem a usa contra a lei é cobrado — seja ele famoso, aliado ou poderoso.
Essa é a pedagogia do exemplo — a única que educa de verdade, sem precisar de cartilha.
Por isso, reafirmo o óbvio que tentaram ofuscar: lei não é escudo, mandato não é salvo-conduto, poder não é capa. Se é para escolher um rumo, que seja o da claridade — especialmente quando ela incomoda.
Sem blindagem e sem amnésia. Sem capa, sem esquecimento. Sem impunidade, sem hipocrisia.
Paulo Lemos é advogado em Mato Grosso.
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