Gonçalo Antunes de Barros Neto
Agostinho aborda a questão do mal por meio de uma biografia intelectual conturbada: sua juventude maniqueísta, que percebia o cosmos como um palco de duas substâncias em conflito — Bem e Mal —, e a descoberta posterior do neoplatonismo, que lhe apresentou a ideia de um Deus extremamente simples e bom. Esse percurso leva à tese central de suas "Confissões" e de "De libero arbítrio": o mal não é uma coisa, mas uma carência; não é uma substância, mas uma privação do bem. Se toda a criação é boa por sua participação no ser, o mal só pode surgir como falta, corrupção ou desordem de algo que, em sua essência, é bom. Assim, Agostinho elimina a tentação dualista: não existe um “princípio do mal” que seja rival de Deus.
Ao rejeitar o mal como substância, ele confronta a objeção clássica associada a Epicuro (e reexaminada por John Leslie Mackie): se Deus é onipotente e absolutamente bom, por que existe o mal? A resposta agostiniana desloca a questão para a liberdade, ou seja, Deus cria seres capazes de amar, mas amar implica a possibilidade de desorganizar os afetos (ordo amoris). O pecado é o amor curvado sobre si (amor curvus in se), vale dizer, a inclinação excessiva por bens inferiores em prejuízo do Bem supremo. Portanto, o mal moral surge do uso inadequado do livre-arbítrio, e não de uma falha na criação. Nesse contexto, Agostinho antecipa a "defesa do livre-arbítrio", que séculos mais tarde desafiaria a lógica da natureza das coisas.
Resta o escândalo do sofrimento “natural”: doenças, catástrofes, mortes prematuras. Agostinho responde em dois movimentos. Primeiro, reafirma a ordem do universo: aquilo que nos fere pode integrar um conjunto harmonioso cuja razão excede nosso ponto de vista; a finitude implica interdependência de causas, inclusive de dores. Segundo, vincula parte desses males à ruptura moral original - a desordem introduzida pelo pecado humano reverbera na criação. A solução não pretende apagar a dor, mas enquadrá-la num drama maior, no qual justiça e misericórdia se entrelaçam. Boécio, na Consolação da Filosofia, seguirá trilha semelhante ao discutir fortuna e providência; Leibniz, ao falar do “melhor dos mundos possíveis”, oferecerá uma versão racionalista e otimista do mesmo ímpeto justificatório, embora Agostinho seja mais sóbrio e soteriológico.
A reflexão agostiniana é inseparável de sua filosofia do tempo: Deus não “prevê” no sentido humano; Ele vê eternamente. Em Confissões XI, o tempo é criação; passado e futuro existem como distensões da alma. Logo, a presciência divina não causa o pecado, porque a causa reside na vontade humana em ato. Esse ponto permite a Agostinho manter, ao mesmo tempo, a soberania de Deus e a responsabilidade da pessoa. Kant, muito depois, ao propor a ideia de “mal radical” como propensão da vontade a subordinar a lei moral ao interesse, troca o horizonte metafísico por um prático, mas preserva a intuição agostiniana de que o eixo do mal está no querer.
Críticos contemporâneos veem restrições nessa arquitetura. A acusação de "teodiceia exculpadora" — que Hannah Arendt suaviza ao examinar a banalidade do mal — levanta a questão: recorrer à desordem dos amores ou à ordem do universo não diminui a singularidade das vítimas? No entanto, Agostinho teria a resposta: o mal é vencido não por um cálculo, mas por graça e conversão, de forma que a justiça não é apenas distributiva; é também terapêutica. A trama de A Cidade de Deus se desenrola em duas sociedades caracterizadas por diferentes tipos de amor: a Cidade de Deus (amor a Deus que leva ao desprezo de si) e a Cidade dos Homens (amor a si que resulta no desprezo a Deus). A crítica política atual encontra nesse ponto algo contemporâneo: a "libido dominandi" como origem das violências, poder e desumanização.
Um mérito adicional de Agostinho é recusar o fatalismo do sofrimento. Se o mal é privação, ele pode ser curado por reordenação do amor — pela virtude, pela comunidade e pela graça. Isso não resolve todos os enigmas, mas redefine a pergunta: não “por que” sofremos em abstrato, e sim “como” responder ao mal sem se tornar parte dele.
Resumidamente, ao tratar o mal como falta de bem, Agostinho evita o dualismo; ao localizá-lo na liberdade, preserva a responsabilidade; ao inscrever tudo numa visão providente do tempo, sustém esperança. Seu legado continua a provocar: não há atalho metafísico que elimine a dor, mas há um trabalho da vontade — individual e comunitário — capaz de orientar o mundo para a paz, porque reeduca o amor que o fundou.
É por aí...
Gonçalo Antunes de Barros Neto é do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso – IHGMT.
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