• Cuiabá, 10 de Julho - 2025 00:00:00

Cannabis: uso medicinal e preconceito sob a visão da psicóloga Letícia Laranjeira 


Rafaela Maximiano

Entrevista da Semana aborda os múltiplos aspectos do uso medicinal da Cannabis, polêmicas e preconceitos. Quem fala sobre o assunto é Letícia Laranjeira, psicóloga especializada no uso medicinal e terapêutico da Cannabis.   

Ao FocoCidade a psicóloga revela uma abordagem esclarecedora sobre diversos aspectos envolvendo essa planta milenar. Ao questionar a possibilidade de dependência decorrente do uso de medicamentos à base de Cannabis, por exemplo, Laranjeira destaca a importância de se compreender as nuances entre o uso recreativo e adulto, ressaltando o papel do Sistema Endocanabinóide no corpo humano.  

A trajetória da Cannabis ao longo da história é destacada pela psicóloga como uma verdadeira aliada da humanidade, desde seus usos primordiais até sua atual aplicação terapêutica. No entanto, ela alerta para os cuidados necessários em casos de crianças e jovens, cujo Sistema Endocanabinóide ainda está em desenvolvimento.  

A baixa adesão de médicos brasileiros à prescrição de medicamentos à base de Cannabis é abordada, sendo atribuída em parte ao persistente preconceito social. Laranjeira denuncia situações desumanas, como ameaças a pacientes, e destaca a urgência de profissionais solidários ao sofrimento das pessoas.  

Ao discutir os benefícios terapêuticos com embasamento em estudos nacionais e internacionais, a psicóloga elenca diversas aplicações, desde o alívio da dor crônica até o tratamento de distúrbios neurológicos e transtornos mentais.  

A criação da Rede Brasileira de Psicologia Especializada no uso Medicinal e Terapêutico da Cannabis é apresentada como uma iniciativa coletiva que visa não apenas educar sobre o uso terapêutico, mas também combater o preconceito, construindo uma Psicologia Canábica.  

A entrevista destaca ainda a importância da Terapia Transdisciplinar no acompanhamento de pacientes que fazem uso da Cannabis, ressaltando o papel fundamental do psicólogo nesse processo. No contexto de doenças severas sem alternativas adequadas, a terapia com Cannabis surge como uma esperança, proporcionando alívio e melhor qualidade de vida para pacientes e suas famílias.  

Laranjeira conclui, enfatizando a importância da consulta a profissionais qualificados antes do início da terapia com Cannabis, e defende um mundo com menos preconceito e mais qualidade de vida.

Confira a entrevista na íntegra:  

O uso de medicamentos à base de Cannabis causa dependência, assim como no chamado uso recreativo?  

Antes de responder essa pergunta, acho importante olhar para a afirmação de que o uso dito recreativo, causa dependência. Porque o uso adulto também pode ser terapêutico. Eu prefiro chamar de uso adulto porque não é uma planta para crianças, para recrear, pelo contrário, hoje sabemos que é uma aliada para adultos e idosos. Mas, pode causar problemas para crianças e jovens saudáveis, isso porque já produzimos no nosso corpo moléculas idênticas às principais moléculas presentes na planta da maconha - cannabis sativa L. Na década de 1990, a partir das pesquisas do cientista israelense Raphael Mechoulam, alguns cientistas americanos descobriram o SEC, que é Sistema Endocanabinóide, um sistema presente no nosso corpo inteiro, com grande expressão no cérebro e no intestino. Ele é responsável pela produção das moléculas de Anandamina, idêntica ao THC- tetrahidrocanabinol, e de 2AG, idêntico ao CBD – canabidiol, que atuam na regulação de vários processos fisiológicos importantes garantindo o equilíbrio do organismo, incluindo regulação humor, apetite, dor, sono, memória, inflamação e resposta imunológica.

Então, é uma substância que o nosso corpo já produz, que é igual ao que tem nessa planta, não em outra planta qualquer. Portanto, quando somos crianças temos um SEC muito ativo e já temos a nossa produção necessária de endocanabinóides, a ingestão dos fitocanabinóides pode atrapalhar o desenvolvimento cognitivo e emocional; o que já não acontece com adultos e idosos, onde a planta pode atuar trazendo muitos benefícios, agindo como um suplemento ao SEC.

Por isso, não é possível falar de dependência sem entender qual planta, rica em THC ou rica em CBD, por exemplo, está sendo usada e as condições da pessoa que usou; fatores como idade, condições de saúde mental dessa pessoa, como é o convívio social, como estão os laços familiares, como está o campo profissional, a estabilidade financeira, se existe um histórico de uso abusivo de outras substâncias na família, etc. No uso medicinal orientado por profissionais da saúde, todos esses fatores e riscos são levados em conta e a prescrição da médica para um óleo rico em THC, rico em CBD ou equilibrado, vai depender da necessidade do paciente.

E como todo medicamento, devemos estar atentos à forma de uso e de desmame. Porque nem todas as pessoas sentem, mas, existe abstinência sim e pode trazer irritação, dor de cabeça, ansiedade, desânimo e outros desconfortos parecidos com a abstinência do café, sintomas que passam em poucos dias. Também é importante dizer que existem evidências de que o CBD pode ser usado, inclusive, para ajudar a combater transtornos por uso abusivo de cannabis. Inclusive, em um estudo de 2010 realizado pela University College London foi possível concluir que o CBD é um potencial tratamento para o uso abusivo de diversas substâncias, inclusive da própria maconha.  

Por que a senhora levantou essa bandeira do uso medicinal da Cannabis?  

Porque plantar é um direito nosso enquanto humanidade, para a gente chegar no lugar que a gente chegou hoje enquanto humanidade foi também porque a gente plantou maconha. Foi a nossa primeira roupa, foi o nosso primeiro papel, foi a nossa primeira bíblia, foi o nosso primeiro remédio, foi a nossa primeira anestesia, e foi também o nosso primeiro alimento, ou seja, a cannabis foi uma das primeiras plantas que fez parte da vida do homem, quando nós deixamos de ser seres caçadores e nos fixamos, quando o homem fez a sua primeira horta, lá estava a maconha.

Devemos considerar a cannabis não como mais um remédio, mas como um saber milenar, que hoje em dia pode ser vista como uma tecnologia de ponta, mas que não deixa de ser uma sabedoria milenar, que é nosso e que só existe graças a resistência do povo preto e periférico.   

Apenas 2% dos médicos brasileiros prescrevem medicamentos à base de Cannabis. Na sua opinião, qual é a principal razão para essa baixa adesão por parte dos profissionais de saúde? E qual impacto do preconceito social no avanço dessa medicina? 

Lamentavelmente, a maconha é uma planta que sofre preconceito ainda no contexto social, se a gente pensar que só 2% dos médicos no Brasil fazem a prescrição do uso da maconha, ou melhor da cannabis, porque ainda vai ter médico que vai achar que Cannabis nem é maconha, é um número muito baixo perto do que a gente precisa.

E ainda tem os médicos que emitem opiniões sem base em conhecimentos científicos ou ainda, que ameaçam seus pacientes. Ouvimos, outro dia, um relato de uma colega que a mãe com câncer foi ameaçada pela médica do SUS, que disse que se ela soubesse que a paciente estava usando qualquer tratamento à base de maconha, ela não iria encaminhá-la para a quimioterapia!

Chega a ser desumana e completamente antiética esse tipo de situação. Precisamos de médicas e médicos solidários ao sofrimento de milhões de pessoas. As evidências estão aí. É um tratamento de ponta na medicina. Fica o convite para o estudo.

O proibicionismo se deu como forma de controle da população negra, e resultou em inúmeros tabus e estigmas que dificultam até hoje o avanço desse debate no nosso país. Esse drama foi algo criado, uma propaganda ideológica construída com esse lugar do proibicionismo, a gente brinca que 90 anos de proibicionismo destruíram mais de 12 mil anos de tradição, foi uma produção intensa de filmes com informações distorcidas sobre a maconha, a indústria americana se preocupou com isso, é por isso que a gente tem que lidar com essas camadas e olhar também para esses tabus.  

A proibição não se deu por uma questão de saúde, (...) foi uma questão política econômica e de eugenia da raça, e por isso a gente não quer só que possa vender remédios à base de cannabis na farmácia, mas a gente quer que as pessoas parem de morrer e ser presas por conta da mesma planta que algumas pessoas podem usar e outras não. A gente se coloca nessa crítica do que chamamos de maconha branca, aquela ideia que prega que pode existir o uso medicinal concomitantemente com a guerra às drogas, e a gente já sabe que não dá, não tem sentido salvar uns e matar outros pela mesma planta.   

Quais são os benefícios terapêuticos da Cannabis que têm sido destacados por estudos nacionais e internacionais?  

Tem muita pesquisa feita nesses últimos anos. Alguns estudos nacionais e internacionais vão dizer que a cannabis pode ter propriedades terapêuticas em várias condições, devido ao caráter tão complexo do Sistema Endocanabinóide no corpo humano. E, são muitos benefícios, né? 

Mas, mas vou tentar listar os principais que são: alívio da dor crônica, como nos casos de fibromialgia, por exemplo; controle de náuseas e vômitos na quimioterapia; melhora em distúrbios neurológicos como a esclerose múltipla e a epilepsia; redução da ansiedade e controle da depressão; auxílio no tratamento da insônia e melhoria do sono; tratamento de doenças inflamatórias e autoimunes, no tratamento de TEPT - Transtorno do estresse pós-traumático - e TDAH - transtorno de déficit de atenção com hiperatividade - e por aí vai.   

Como surgiu a ideia de criar uma rede de profissionais focada na educação sobre o uso terapêutico da Cannabis, e qual tem sido o impacto dessa iniciativa até agora?  

A iniciativa surgiu a partir da importância de pensar uma transformação social e política que reconheça o potencial terapêutico da maconha a partir da lógica da coletividade, unindo profissionais da psicologia de diversos territórios e abordagens, mas com o mesmo objetivo de apoiar quem precisa, sem esquecer de quem está morrendo por conta da mesma planta. Não dá para falar de maconha de uma maneira isolada, pois esta é uma luta coletiva, que se constrói à medida que experiências em torno da cannabis vão sendo documentadas, é por isso que promover debates sobre o uso da Canábis Medicinal pode abrir espaços para uma política de drogas mais justa que reconheça o potencial terapêutico desta planta.

Fico muito feliz por ter participado também da idealização e organização do I Congresso de Psicologia e Cannabis, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais, em março deste ano, em parceria com o CRP-MG. Além disso, também fomos disparadores e articuladores de diversas comissões que estão surgindo debatendo o uso medicinal da maconha, dentro dos Conselhos Regionais de Psicologia do Brasil.   

Assim, a Rede Brasileira de Psicologia Especializada no uso Medicinal e Terapêutico da Cannabis e seus Derivados – PsicoCannabis - é um coletivo que vem se formando desde 2020 enquanto projeto de psicoeducação e atuando enquanto rede de profissionais de psicologia desde 2021 na construção de uma possível Psicologia Canábica. 

Um termo que vem sendo debatido, e que temos entendido como fazer científico, profissional que considera as relações estabelecidas entre pessoas, sociedade e maconha, não necessariamente que a gente criou uma psicologia diferente, mas a gente se debruça sobre esse tema, com teorias e abordagens diferentes para pensar como que se dá essa relação psicossocial com a planta, com o proibicionismo e a produção de sofrimento mental que vem dele.   

Como a rede de profissionais tem contribuído para a desconstrução do preconceito em relação à Cannabis, especialmente no contexto da medicina?  

Se posicionar diante da causa canábica é compreender a complexidade dessa pauta e entender que outras lutas sociais estão diretamente relacionadas a essa problemática, lutas como: a antirracista, a feminista, a antiproibicionista, a luta anti-LGBTQIAPN+fobia, o movimento antimanicomial, a intersecção entre raça, gênero e classe, a crítica sobre a medicalização da vida e a defesa de políticas de Redução de Danos, estão diretamente relacionadas ao avanço desse debate, e são, portanto defendidas pela rede PsicoCannabis.   

Atuando na construção desse debate e de uma Psicologia que se posiciona em defesa dos Direitos Humanos apoiados no respeito, liberdade, dignidade, igualdade e integridade do ser humano. Acho que é isso que uma boa psicologia faz, trabalhar para que a pessoa consiga se perceber sozinha, consiga pensar suas saídas próprias, mas enquanto isso a gente vai construindo caminhos juntos, de se perceber e de vivenciar essas saídas.  

Pode explicar um pouco mais sobre a Terapia Transdisciplinar e por que é essencial para os pacientes que fazem uso da Cannabis? E qual é o papel do psicólogo nesse processo?  

Um tratamento transdisciplinar refere-se a uma abordagem de cuidados ou intervenções que envolve profissionais de diferentes disciplinas trabalhando colaborativamente para tratar um paciente. Esse modelo reconhece que muitos problemas de saúde ou questões complexas não podem ser totalmente compreendidos por uma única disciplina.

Portanto, profissionais de diversas áreas colaboram para oferecer uma abordagem mais completa. Existe a integração de conhecimentos, cada profissional traz a sua consideração não só de aspectos físicos, mas também de emocionais, sociais e psicológicos do paciente.

Além disso, a cannabis é uma medicação que requer um acompanhamento cotidiano, por isso recomenda-se uma terapia transdisciplinar, aquelas onde o paciente é acompanhado por mais de um profissional, sendo a psicologia essencial no desenvolvimento desta terapia, levando em conta que este profissional habitualmente é quem está mais próximo desse paciente e consegue compreender melhor essas subjetividades, assim como a singularidade da medicina canábica e ajudar as pessoas no processo de autogestão de si e do uso terapêutico da planta.

Quando a gente faz um acompanhamento transdisciplinar em que trabalha junto médico prescrevendo e o psicólogo acompanhando diariamente o processo, a gente percebe que tem sido muito mais efetivo, as pessoas desistem menos, porque é uma terapêutica ousada, no sentido de que ela exige uma observação muito forte de você mesmo, do que você está sentindo, de como você está reagindo, e as pessoas têm a dificuldade em se observarem.   

Portanto, o papel da psicologia é essencial nesse contexto por estar tão próxima do paciente. Já que o foco desse tipo de tratamento é no paciente, na sua autonomia frente ao seu cuidado.   

Como a terapia com Cannabis tem se apresentado como uma alternativa para pessoas com doenças severas para as quais não há alternativas adequadas?  

Proporcionando alívio para pessoas e famílias que há muito tempo não viam saídas para seus sofrimentos e de seus familiares. Fazendo “milagres” no cuidado de pacientes com autismo, com doenças raras, aumentar a expectativa de vida de crianças com síndrome de Dravet, por exemplo, que antes do uso medicinal da maconha não chegavam à vida adulta. Até, como cuidados paliativos, proporcionando conforto e qualidade de vida aos pacientes que enfrentam doenças graves e potencialmente fatais.

A terapia com cannabis medicinal pode e deve ser considerada para ajudar a aliviar alguns dos sintomas associados a doenças terminais, como dor, falta de apetite e náusea, insônia, depressão, ansiedade etc. Além de ser a única resposta possível para algumas doenças raras.   

Suas considerações finais sobre o assunto...  

Primeiro, eu gostaria de agradecer a oportunidade e o espaço aberto para a apresentação de informações e pesquisas sobre essa planta milenar que é ao mesmo tempo medicina de ponta. Mas, a gente também gostaria de lembrar que antes de começar a terapia com cannabis, é muito importante que os pacientes consultem profissionais de saúde qualificados para obter orientação personalizada, com avaliação dos riscos, benefícios e possíveis interações medicamentosas, garantindo uma abordagem segura e informada como parte do projeto terapêutico do paciente.

Dito isso, sigamos a luta por um mundo com menos preconceito e mais qualidade de vida. Muito obrigada!   




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