Rafaela Maximiano
No último ENEM, o Brasil foi provocado a refletir sobre um tema que transcendeu os limites das salas de aula e invadiu o cerne das relações familiares e sociais: a invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pelas mulheres. Em uma entrevista ao FocoCidade com a Dra. Rosana Leite Antunes de Barros, Defensora Pública Estadual e mestra em Sociologia pela UFMT, as nuances desse debate foram desdobradas, evidenciando uma realidade que, embora presente, muitas vezes passa despercebida.
Rosana Leite destacou que a invisibilidade do trabalho de cuidado não é uma imposição natural, mas sim uma carga que tem sido historicamente atribuída às mulheres. A temática do ENEM 2023, segundo a defensora, revela ainda a falta de reconhecimento do trabalho doméstico, que, apesar das conquistas femininas em diversos setores, persiste como uma responsabilidade predominantemente feminina.
A entrevistada ressaltou a sobrecarga enfrentada por mulheres que desempenham funções tanto fora de casa quanto no ambiente doméstico. Desequilíbrio que se reflete na desigualdade de gênero, contribuindo para a disparidade salarial e para a escassez de oportunidades em cargos de liderança.
A naturalização da dupla jornada, de acordo com a Dra. Rosana, afeta a saúde física e mental das mulheres, desencadeando ansiedade e depressão. Combatendo essa normatização, Rosana Leite pontua a necessidade de redistribuir as responsabilidades domésticas e fomentar a educação de gênero desde cedo, promovendo a igualdade desde a infância.
A Entrevista da Semana ainda abordou a violência contra a mulher, a importância de redes de atenção e proteção, além do papel crucial da sociedade na mudança de mentalidades. A entrevistada também chamou a atenção para a importância de considerar as múltiplas desigualdades que afetam diferentes grupos de mulheres, como a discriminação contra mulheres LGBTQIAPN+, buscando criar um ambiente inclusivo e amparado pela lei.
“O ENEM de 2023, ao trazer à tona a invisibilidade do trabalho feminino, serve como um convite à reflexão e à ação, lembrando-nos de que a busca por uma sociedade mais justa e igualitária é uma jornada coletiva, na qual cada um tem um papel a desempenhar”, afirma Rosana Leite.
Confira a entrevista na íntegra:
O tema da redação do ENEM 2023 aborda a invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pelas mulheres no Brasil. Como a Dra. vê essa invisibilidade se manifestando na sociedade atual?
O cuidado não é uma tarefa exclusivamente das mulheres, mas, sim, que foi imposta a elas desde os primórdios. Fica evidenciada as duplas e triplas jornadas as quais as mulheres estão expostas. O tema da redação do ENEM de 2023 externa a verdadeira falta de visibilidade do trabalho doméstico, em regra, realizado pelas mulheres.
Atualmente, e há muito tempo, as mulheres já ocupam e ocuparam todos os lugares dantes ocupados apenas por homens. Todavia, mesmo com as mulheres contribuindo efetivamente para o PIB e para com a sociedade, não são poupadas de desenvolverem em grande parte as tarefas domésticas. Não há reconhecimento do trabalho das mulheres dentro de casa, o que acaba refletindo no trabalho extra lar. Os filhos e filhas são, em grande parte, de responsabilidade delas, acarretando na sobrecarga de trabalho, e como algo bastante natural.
É visível, ademais, quando ambos trabalham fora, principalmente em casais heteronormativos, que em havendo necessidade de se ausentar do trabalho por conta de cuidados com os filhos e filhas, a tarefa em grande parte, fica com elas. A sobrecarga do trabalho é algo invisível, pois, os dias passam, os filhos e filhas crescem, todos e todas se alimentam, vivem, e como se fosse natural, os ciclos giram, sem que absolutamente nada seja feito para mudar o que tem sido real.
A sobrecarga das mulheres com o trabalho fora de casa e as responsabilidades domésticas é uma realidade comum. Como isso contribui para a desigualdade de gênero e quais são as implicações desse cenário?
Os homens acabam se sobressaindo em capacitações e ocupação de posição de destaque na sociedade. As mulheres precisam “firmar” a competência todos os dias, para enfatizarem que, de fato, são capazes de executar demandas fora de casa. De outro turno, na iniciativa privada acabam por receber salários e gratificações menores, mesmo desempenhando a mesma função.
Ressalte-se que em cargos de chefia e direcionamento as mulheres têm sido preteridas, porquanto é o gênero masculino a ocupar essas posições. As implicações são diversas com a exaustão ocasionada pela sobrecarga de trabalho, sem contar com a falta de crédito ao trabalho por elas desenvolvidos, por conta da maternidade.
A dupla jornada enfrentada por muitas mulheres é frequentemente naturalizada. Como isso impacta a saúde física e mental das mulheres e como podemos combater essa normatização?
O corpo é indissociável das emoções. O reflexo na saúde física e mental das mulheres impacta negativamente na vida delas, o que contribui para o aparecimento das doenças psicossomáticas. Tem sido realidade atual a ansiedade e a depressão como doença muito sentida no universo feminino. Sem contar que são as mulheres que gestam os filhos e filhas, menstruam, amamentam, e exercem os muitos cuidados. Cuidar de quem cuida ainda não tem sido usual, acontecendo desgaste da saúde física e mental delas.
Há necessidade de firmar no dia a dia quanto à referida normatização, como forma de enfrentamento. Dentro de casa é importante que todas as pessoas venham a contribuir no trabalho doméstico, independente do gênero, a fim de que essa realidade possa ser modificada. A criação e educação dos filhos e filhas também é forma de trabalhar desde cedo o conceito de justiça social.
Não podemos ter qualquer dúvida, quando se cuida de violência contra as mulheres, sobre quem é a vítima e quem é o agressor.
Na sua experiência como membra da Comissão Especial de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher do CONDEGE e Coordenadora do NUDEM/MT, como você tem visto a relação entre a violência contra a mulher e a desigualdade de gênero? Quais são os principais desafios nesse sentido?
A desigualdade de gênero tem como um dos desafios enfrentar as muitas violências as quais as mulheres se encontram adstritas. Os desafios, a meu sentir, ainda se perfazem na mulher se reconhecer como vítima de violência, e fazer com que o sistema de justiça se capacite e aplique as normas em proteção das mulheres vítimas das muitas violências.
Entretanto, o maior desafio, sem dúvida, é que a sociedade dê crédito à palavra das mulheres. Não podemos ter qualquer dúvida, quando se cuida de violência contra as mulheres, sobre quem é a vítima e quem é o agressor. Por muitos anos fomos desacreditadas em nossas vivências. Na atualidade, com a era digital, os áudios e vídeos a mostrar as muitas violências sofridas por elas, tem deixado evidente o que já era contado, sem muita credibilidade. Elas precisam ser creditadas em suas falas, sem que tenham que filmar ou gravar as malfadadas agressões.
Quais são as principais barreiras que as mulheres enfrentam ao tentar denunciar casos de violência doméstica, e como o NUDEM/MT está trabalhando para superar essas barreiras?
A historicidade, a religiosidade, as dependências econômica e emocional, são exemplos de barreiras enfrentadas e sentidas por elas. O NUDEM tem contribuído na divulgação das leis, das ações, participando e sendo parceiro de campanhas temáticas, com a finalidade de divulgação do trabalho de enfrentamento à violência contra as mulheres. O NUDEM é um núcleo que tem sido muito bem recepcionado pela sociedade, onde a compreensão tem se firmado a cada dia, com o trabalho realizado.
A educação sempre foi a “chave” para novos paradigmas sociais.
A educação desempenha um papel importante na mudança de mentalidades e combate à desigualdade de gênero. Que medidas podem ser tomadas para promover a educação de gênero nas escolas na sua opinião?
Esse é um assunto bastante emblemático, pois todas as vezes em que foi mencionado, as dúvidas e falta de compreensão sobre a importância em se tratar do tema foram motivo até mesmo de fake news.
A educação sempre foi a “chave” para novos paradigmas sociais. Os legisladores e legisladoras da Lei Maria da Penha fizeram incluir no artigo 8º, a importância de se incluir nos currículos escolares a não violência contra as mulheres. Falar de igualdade de gênero é construir uma sociedade melhor, sem preconceitos quanto ao gênero. É, também, falar sobre os crimes contra a dignidade sexual, já que muitos deles se encontram escondidos dentro de casa. O respeito, sem qualquer dúvida, perpassa pela igualdade de gênero.
A igualdade de gênero e a valorização do trabalho de cuidado também estão relacionadas à igualdade salarial. Como podemos garantir que as mulheres sejam remuneradas de forma justa por seu trabalho?
Na esfera pública esse não é um problema, tendo em vista a igualdade salarial, independentemente do gênero. Já na seara privada, a realidade é distinta, onde as mulheres percebem menos que os homens. O que é ponto de encontro entre as esferas pública e privada é a falta de oportunidade de as mulheres exercerem cargos de chefia e direcionamento. Apesar de elas estarem galgando aos poucos a colocação no mundo do trabalho, a diferença é grande quando falamos de oportunidades.
A palavra empoderamento é algo até banalizado na atualidade. Todavia, para se empoderar é preciso compreender que a jornada das mulheres é muito mais exaustiva, e que somos múltiplas. Não há como empoderar uma mulher negra, LGBTQIAPN+, quilombola, ribeirinha, por exemplo, da mesma forma em que se empodera uma mulher branca.
Além das iniciativas legais, como a Lei Maria da Penha, que outras ações são necessárias para combater a violência contra a mulher de forma mais eficaz?
É preciso que as ações sejam conjuntas por elas, por isso a necessidade da formação das redes de atenção e proteção, tal como descrita na Lei Maria da Penha. Apenas o sistema de justiça, com toda boa vontade, não é capaz de resolver sobre tema tão emblemático. Mato Grosso foi o primeiro estado a aplicar a Lei Maria da Penha, sendo referência na respectiva aplicação. Todavia, se toda a sociedade não se esmerar em combater a desigualdade de gênero cotidianamente, continuaremos a presenciar os muitos delitos cometidos contra as mulheres, que tem, também, na cultura do estupro uma das perversas causas a se discutir.
O estigma e a discriminação contra mulheres LGBTQ+ também são uma preocupação quando se trata de desigualdade de gênero. Como você vê a interseccionalidade dessas questões em sua atuação?
Quando falo sobre mulheres, costumo falar no plural. Somos muitas, muitos segmentos, que devem ser pensados, para que 100% das mulheres possam ser contemplados pelo princípio da proteção integral. As violências que se baseiam em discriminações em razão de gênero, são potencializadas quando se consideram as múltiplas desigualdades, e que afetam de forma diferenciada as mulheres negras, pobres, indígenas, quilombolas, LGBTQIAPN+, imigrantes, e outras.
O NUDEM é um núcleo tem que voltado as lentes para as muitas interseccionalidades, a fim de que todas as mulheres possam se sentir amparadas. Fizemos pela Defensoria Pública o primeiro mutirão para a mudança de nome e gênero, que ocorreu em maio de 2022. De outro turno, a Instituição está no embate pelo ambulatório trans estadual, que atenderá a essa demanda tão machucada pela discriminação. A nosso pedido, Defensoria Pública, o Governo de Mato Grosso instalará e colocará em funcionamento mencionado ambulatório, com promessa para o fim de novembro/2023.
Como os homens podem desempenhar um papel ativo na promoção da igualdade de gênero e na redução da invisibilidade do trabalho de cuidado das mulheres?
Essa é uma obrigação de toda a sociedade, independentemente de gênero. Os homens não possuem o protagonismo, mas podem, e devem falar a respeito. Muito mais que falar, o gênero masculino deve agir, para que essa desigualdade possa ser diminuída. A criação dos nossos filhos e filhas também é um ponto que não pode ser descartado, de forma a nunca tratar de forma diferente por conta do gênero, para que o poder não permeie e traga malefícios no futuro da nação.
A igualdade de gênero é uma pauta que deveria ter políticas públicas homogêneas nacionalmente, para valorizar o assunto e se fazer cumprir as ações. Mais que valorizar o trabalho de casa, em regra realizado pelas mulheres, a contribuição em desempenhar o papel quebra paradigmas e preconceitos.
Considerações finais...
O ENEM de 2023 trouxe muitas surpresas e discussões importantes para o gênero feminino. Quantas famílias puderam falar do tema, ao questionar os filhos e filhas sobre o tema da redação? Para a Defensoria Pública de Mato Grosso, especialmente, o valor da prova foi ainda mais especial.
No mês de junho do ano de 2020, no período pandêmico, após a percepção de que as mulheres estavam mais reclusas e sem possibilidade de sair de casa, foi realizada a campanha “Eu uso máscara, mas não me calo! Juntas, somos mais fortes!”, com a finalidade de as incentivar a buscar o poder público em caso de violência. Na prova de interpretação de texto deste ano, mencionada campanha foi tema de uma das questões, o que exteriorizou que o caminho percorrido é o correto.
A violência contra as mulheres é uma questão, por necessidade de discussão. É lamentável ver que meninas e mulheres crescem e se desenvolvem envoltas a tantas violências. Assim, fica temerário pensar em uma sociedade mais justa e solidária, se mudanças não acontecerem.
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