Rafaela Maximiano - Da Redação
“A pandemia facilitou a entrada ilegal e a rede criminosa de tráfico de pessoas”. A denúncia é da coordenadora do Comitê Estadual de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Cetrap-MT), Dulce Regina Amorim.
A promessa de empregos fáceis em um período em que muitas pessoas perderam seus empregos e vários países vivem problemas econômicos, é um dos facilitadores das redes de tráfico humano que coloca as pessoas em situação de trabalho escravo, trabalho infantil e exploração sexual.
Na Entrevista da Semana ao FocoCidade, a assistente social revela também que “já está sendo cogitado que existe o tráfico de pessoas para fim de mendingância. E parece já estar ocorrendo em vários estados, onde crianças são alugadas para sensibilizar mais”.
Como pontua Dulce Regina, o combate às redes de tráfico humano dentro e fora do país só serão mais combatidos se esse crime “sair da invisibilidade”. “Muitos crimes de exploração sexual ou trabalho escravo, por exemplo, não são registrados como de tráfico, o que dificulta a identificação da rede de criminosos”.
E alerta: “não tenha medo de denunciar, porque é o medo que faz com que essas redes de tráfico humano continuem”.
Como ocorre o aliciamento de pessoas, a situação dos venezuelanos em Mato Grosso e a punição para quem faz o tráfico de pessoas, também são alguns pontos abordados na entrevista. Boa leitura!
O que é o Cetrap e como é a sua atuação com o tráfico de pessoas e outros crimes?
O Comitê de Estado de Prevenção e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas é um órgão deliberativo, normativo, monitorador, fiscalizador e avaliador das políticas e do enfretamento ao tráfico de pessoas no Estado. Estamos ligados à secretaria de Estado de Assistência Social e Cidadania, e, somos compostos por até 15 representantes da sociedade civil organizada e 15 do poder público. Além das secretarias de Estado temos compõem o comitê representantes do Tribunal de Justiça, do Ministério Público, da Defensoria, polícias Civil e Militar Civil, AL-MT, PGE, entre outras.
Mas o importante a falar é que só existe esse enfrentamento hoje por causa de um árduo trabalho onde conquistamos a lei 11.188 de 2020, que criou a política estadual de prevenção e enfrentamento ao tráfico de pessoas e este comitê.
Desde o início, em 2009, eu participo. Antes nãos e falava em tráfico de pessoas. Há vinte anos trabalhamos a primeira pesquisa sobre tráfico de pessoas, eu fui pesquisadora aqui no estado pela Pastoral da Mulher Marginalizada e o trabalho identificou rotas e mulheres que já haviam sido levadas para o exterior. A pesquisa foi realizada na época nos municípios de Cuiabá, Várzea Grande, Cáceres, Rondonópolis, Alta Floresta e Pontes e Lacerda. A partir daí identificamos que o tráfico de pessoas tinha finalidade de trabalho escravo e exploração sexual de mulheres e adolescentes.
Outra pesquisa que fizemos financiada pelo Ministério da Saúde, com mais de 800 mulheres em Mato Grosso em situação de prostituição, identificamos outra rota de tráfico de pessoas para fim de exploração sexual. Essas pesquisas deram base para que chamássemos outras organizações e o Estado para montar esse comitê. A OIT - Organização Internacional do Trabalho, estava em Mato Grosso desenvolvendo um trabalho sobre trabalho infantil e nos apoiou em um grande evento que consolidou esse comitê. Já em 2012 um decreto do Governo do Estado nos oficializou, éramos ligados à Secretaria de Segurança Pública. E, agora em 2020 essa ratificação.
Conto isso porque, nosso maior esforço é tirar esse crime de invisibilidade. Porque quando falamos em tráfico de pessoas, muitos não acreditam. Existe esse crime de tráfico de pessoas para trabalho escravo, trabalho infantil, exploração sexual, casamento servil, mas o maior índice aqui em Mato Grosso é para a exploração sexual e para o trabalho escravo e o infantil.
O problema é que o tráfico de pessoas é um crime subnotificado. Quando as vítimas são resgatadas em situação de exploração sexual, tralho infantil ou escravo, as estatísticas são lançadas com esses crimes e muitas vezes essas vítimas vêm de uma rota do tráfico de pessoas. Por isso, nossa luta para tirar esse crime dessa subnotificação e combater essas rotas.
Não tenha medo de denunciar, porque é o medo que faz com que essas redes de tráfico humano continuem.
O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime divulgou ano passado quando do início da pandemia da covid, que o fechamento de fronteiras dos países e a queda global do emprego, poderia causar também o aumento do tráfico de pessoas no mundo. Realmente isso ocorreu?
Sim, infelizmente. Na última semana por exemplo, conversamos com o prefeito de San Matias, na Bolívia, para que a gente faça uma campanha de prevenção ali na fronteira com a Bolívia. Com a fronteira fechada não existe o órgão de fiscalização, no qual a pessoa tenha que fazer a regularização da sua entrada no país. Como sabem que a fronteira está fechada, eles estão passando livremente sem identificação. Tivemos uma reunião em São Paulo que chamou a atenção do número de pessoas que chegam naquele Estado indocumentadas, inclusive adolescentes.
Na pandemia se fechou tudo, mas as pessoas não pararam de circular. Os órgãos pararam de atender presencialmente, estão somente de forma on-line, e, a partir daí as pessoas estão entrando no país sem serem documentadas. A pandemia facilitou a entrada ilegal e a rede criminosa de tráfico de pessoas. Se você não tem documentos válidos você não consegue um emprego formal, ou um atendimento assistencial adequado – apesar que no país, na saúde, independente de documentos a pessoa é atendida, as crianças também indocumentadas podem ser matriculadas, mas temos toda uma rede de assistência social que requer a formalização de documentos.
Por isso, nosso trabalho no ano passado não parou coma pandemia. Viajamos o Estado, trabalhamos com a Polícia Rodoviária Federal alertando as pessoas. Inclusive, há um mês atrás, a PRF parou um ônibus vindo do Maranhão, uma linha clandestina que trazem pessoas até Sorriso para trabalhar em fazendas. Vimos que ficam trabalhando em situação vulnerável, alojamentos precários.
Outra preocupação nossa com a pandemia é onde essas pessoas que chegam ao país vão fazer a sua documentação. Tudo é on-line agora elas não têm acesso.
Qual a atual realidade que envolve o tráfico de pessoas, o trabalho escravo e o trabalho infantil no estado?
Recebemos denúncias de adolescentes que vêm de um município para outro e estão em situação de exploração. Em uma situação, uma menina fugiu de onde estava, denunciou e conseguiu salvar outra menina também. As duas estavam em uma casa em Várzea Grande. Elas vieram nesse processo de tráfico, foram aliciadas, convidadas para trabalhar e chegando são colocadas na situação de exploração sexual, presas e obrigadas a fazer programas sexuais, nesse tempo de pandemia. A polícia socorreu e nós fizemos o atendimento e encaminhamento do seu retorno para a família dela no estado do Amazonas.
Teve outra situação onde pessoas foram trazidas da Bolívia com a promessa de emprego e estavam em condições de trabalho escravo, entraram por Cáceres, fugiram e conseguiram ajuda da polícia.
De fato, isso está ocorrendo temos o tráfico interno, que chamamos de doméstico, e o externo, entre os países. Por isso intensificamos nosso trabalho de enfretamento junto com as polícias e também as campanhas de prevenção para orientar as denúncias.
Nossa realidade quando começamos a trabalhar era muito oculta, com o trabalho do comitê estamos dando visibilidade ao crime, as pessoas estão reconhecendo o crime de tráfico de pessoas e estão denunciando. Os profissionais que trabalham na ponta estão identificando, reconhecendo esse crime e estão atuando. Os órgãos de notificação começam a registrar os casos como sendo de tráfico de pessoas, esse é o primeiro passo para combater esse crime.
Como ocorre o aliciamento de pessoas?
Geralmente em propostas de emprego, de casamento, para estudar. O tráfico é muito sutil e hoje mudou o aliciamento. Antes pessoas desconhecidas de uma comunidade que faziam esse contato, hoje são pessoas conhecidas. Uma vítima daquela comunidade, que foi aliciada, para ela sair daquela condição de trabalho escravo ou de exploração sexual tem que aliciar novas vítimas. Ela volta para a sua comunidade toda bonita, com roupas de marca tentando passar uma imagem de bem-sucedida para convencer outras meninas, outras mulheres. Agente sempre fala que esse crime não é coisa de novela e nem pense que no final vai ter um príncipe que vai te resgatar.
Nós temos inclusive uma campanha “Não deixe que seu sonho vire uma armadilha”, porque todas as pessoas têm um sonho, de ser modelo, de casar, de ter um emprego bom, de ser jogador de futebol e se aproveitam desses sonhos para aliciar.
E, nesse período de pandemia é muito mais complicado pois muita gente perdeu emprego, está vulnerável, muitas famílias perderam a pessoa que sustentava a casa, então isso acaba fragilizando emocionalmente, psicologicamente e economicamente. Alerto também que não é só a população pobre que está sujeito a ser vítima desse crime não. Todos nós temos um sonho e é justamente nesse sonho que essa rede pega as pessoas, prestem atenção nos convites e quem os faz.
Qual a situação dos Venezuelanos em nosso estado?
Já temos muitas famílias estabelecidas em Mato Grosso. Agora nesse período de pandemia está mais difícil de fazer a regularização delas o que as torna indocumentadas, o que dificulta achar um emprego, as empresas não contratam.
O imigrante quando chega no país não tem que ir direto à polícia federal, ele tem que entrar no sistema brasileiro e fazer um pré-cadastro, que atualmente é on-line. Após isso, ele agenda uma data na PF para realizar a entrevista e finalizar essa regularização e documentação necessária. Parece simples, mas não é. Nem todo venezuelano entra aqui como refugiado, haitiano é visto humanitário, se for de outros países tem que pedir visto de residência ou de estudante, ou para trabalhar. E, eles se confundem com essas situações também.
Tem a pastoral do Imigrante que faz esse trabalho de orientação e encaminhamento, conversamos com as secretarias dos municípios para fazer esse trabalho também. Mas sabemos que existe muito venezuelano trabalhando sem registro por conta da documentação. Dizemos que eles não são ilegais, eles são indocumentados e isso pode levá-los a cair numa rede de trabalho escravo, bem como sua família.
Existe também uma investigação, porque esses dados já chegaram para nós e encaminhamos para a secretaria de segurança. Profissionais que trabalham na abordagem dessas pessoas em situação de rua identificaram que muitas crianças não são daquelas famílias venezuelanas, ou daquela pessoa que estava ali na rua. Já está sendo cogitado que existe o tráfico de pessoas para fim de mendingância. E parece já estar ocorrendo em vários estados, onde crianças são alugadas para sensibilizar mais. Você passa no sinal e vê as crianças ali pedindo ou vendendo e você é inclusive mais generoso. E, é fato, já foram identificados que muitas dessas crianças que estão ali não são filhos daquelas pessoas e está sendo investigado.
E, quanto à punição de quem faz o tráfico de pessoas. Como está esse enfrentamento?
Quando o comitê recebe uma notícia de denúncia encaminhamos para a comissão de repressão e responsabilização que é formada por delegados da Polícia Judiciária Civil, promotores e fica a caso deles fazer o levantamento para punição. Por exemplo, o último caso que recebemos das adolescentes de Brasília. Os representantes da PJC e do Ministério Público entraram em contato com o delegado que estava no caso e já começaram a subsidiá-lo com as informações que recebemos. Além de fornecer as informações que pesquisamos a partir da denúncia também damos assistência à vítima na hora do depoimento. Pois, tivemos casos em que a vítima após resgatada acabou retornando para a sua cidade de origem sem dar depoimento, o que é imprescindível para a punição dos culpados.
Então também fazemos orientação às pessoas que trabalham na ponta, com o atendimento à população para conseguir identificar os sinais, que nos avise para que possamos fazer esse depoimento de forma correta. Há um procedimento jurídico que se chama antecipação de provas, também estamos nos organizando para que isso ocorra, ou mesmo pegar um termo de declaração da pessoa que é resgatada, antes que ela retorne à sua família.
Dentro do comitê temos três comissões: a de prevenção que faz esse trabalho educativo e que capacita; a te atenção à vítima que cuida da pessoa física e emocionalmente inclusive de manter os cuidados quando ela retorna para sua cidade ou país; e, a comissão de repressão que cuida do encaminhamento do caso no âmbito da segurança pública e do judiciário.
O que poderia mudar essa realidade e que não é feito?
Primeiro a luta da implementação dessa lei 11.188 de 2020, porque a partir do momento que todas as secretarias de políticas públicas começassem a ter na pauta delas a discussão do tráfico de pessoas nas suas diversas finalidades, ira facilitar e muito ao enfrentamento e à identificação do crime. Por exemplo, os profissionais da saúde, atendem pessoas com sinais. Ninguém chega dizendo eu fui explorada, traficada violentada. Mas ela chega com sinais. E, a partir do momento que o profissional tem essa mudança de olhar ele faz o acolhimento humanizado e identifica essa violação gravíssima. O meu sonho é que a gente tenha profissionais na ponta que tenham uma mudança de olhar que possa identificar mais além, um olhar mais humanizado.
Como a sociedade pode ajudar no contexto de denúncias?
Crianças e adolescentes podem ligar no disk 100. Ele teve uma nova reformulação e está sendo mais rápido. Ou também nos conselhos tutelares que toda cidade tem.
Se a pessoa suspeitou, denuncie. A denúncia é anônima, ninguém será identificado, os órgãos responsáveis farão toda investigação a partir da denúncia. Se for adulto tem o 180 e o 190, ou ainda da Polícia Rodoviária Federal o 191. São os canais que a gente está trabalhando muito juntos para que eles também tenham esse olhar diferenciado de quando alguém ligar possa identificar esses casos.
Não tenha medo de denunciar, porque é o medo que faz com que essas redes de tráfico humano continuem. Precisamos mudar o nosso olhar e não ter medo de denunciar.
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