Quando publicou O fenômeno humano, o jesuíta e paleontólogo Pierre Teilhard de Chardin propôs algo mais ambicioso que uma síntese entre fé e ciência: um mapa do real em quatro grandes etapas — cosmogênese, biogênese, antropogênese e noogênese — onde a evolução é lida como elevação de complexidade acompanhada de aprofundamento da consciência.
A tese central é conhecida: à medida que a matéria se organiza em sistemas mais complexos, emergem graus superiores de interioridade; no humano, a consciência torna-se reflexiva e inaugura a noosfera, camada de pensamento e interconexão que envolve a Terra. Longe de um espiritualismo desencarnado, Teilhard escreve como quem passou anos em campo, entre fósseis e datações, vendo no tempo profundo mais que um acúmulo de acaso: um vetor de convergência.
Seu vocabulário — complexidade-consciência, energia tangencial (as forças que agregam estruturas) e energia radial (a atração do sentido, cujo nome clássico é amor) — tenta dar conta da tensão constitutiva do universo: dispersão e coesão, entropia e ordem, acaso e direção. Não há determinismo fácil; há uma aposta: quando a matéria aprende a pensar, abre-se a possibilidade de uma evolução por cooperação, na qual técnica e vínculo caminham juntos. Daí o horizonte do ponto Ômega, foco de personalização máxima e unidade sem fusão, que o autor identifica teologicamente com o Cristo — mas que também pode ser lido como metáfora reguladora de plenitude, um telos que puxa a história.
Comparado a outros pensadores, Teilhard ocupa posição singular. Com Darwin, partilha o retrato da vida como genealogia e seleção; dele diverge ao enfatizar, mais que a adaptação, a direção ascensional da complexidade. Em Bergson, encontra eco no élan vital, mas substitui a intuição vitalista por uma arquitetura cosmológica, mais afinada com a geologia e a paleontologia.
O livro também oferece uma ética e uma política do futuro. Ética: se a evolução depende de convergência, cooperar não é altruísmo piedoso, é condição de avanço. Política: sem governanças planetárias que cuidem dos comuns — clima, informação, biosfera —, a noosfera degrada-se em barulho. Décadas antes da internet, Teilhard intuiu uma Terra cerebrada, em que mentes se conectam e aceleram inovações. O risco, que ele subestima, é a uniformização ou a captura técnica do desejo; por isso, seus críticos pedem antídotos: pluralismo forte, garantias de liberdade e atenção à dor dos “perdedores” do progresso.
Há, claro, flancos. Seu otimismo teleológico parece ignorar regressões históricas; a linguagem de “forças” espirituais pode confundir níveis ontológicos; e a identificação explícita de Ômega com o Cristo permanece ponto de fé, não conclusão científica. Mas a força de O fenômeno humano está menos em provar um destino do cosmos e mais em desfazer uma falsa alternativa: ou matéria sem sentido, ou espírito sem mundo. A obra mostra que é possível pensar evolução e sentido na mesma frase, sem violentar os dados nem renunciar à esperança.
Relido no século XXI, Teilhard continua provocando: se a complexidade cresce e a consciência se interliga, que ethos deve orientar nossa potência técnica? Ele responde com três verbos: unir, personalizar, espiritualizar. Unir, para que a rede seja comunhão, não grade. Personalizar, para que a unidade não esmague diferenças. Espiritualizar, para que o avanço não se esgote em eficiência, mas se abra ao valor. É pouco para alguns, muito para outros. Para quem busca saídas da crise de sentido, é um convite raro: pensar o humano como fenômeno — e como promessa.
É por aí...
Gonçalo Antunes de Barros Neto ( Saíto) tem formação em Filosofia, Sociologia e Direito (podbedelhar@gmail.com).


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