• Cuiabá, 07 de Julho - 00:00:00

Oh... Deus Meu!

Dia desses, enquanto aguardava o sinal se abrir em uma das artérias mais movimentadas da cidade, mesmo a boca da noite, Luís olhava insistentemente ao seu relógio, e, absorto, não percebera o senhor que se colocou ao seu lado. Notou-o ao ouvi-lo murmurar: “uma decisão judicial, antes de um decidir-se, deveria ser um dirimir dúvida, solucionar a querela, o incompreendido”. “Ah!...” – deixou escapulir, enquanto virava-se para o octogenário, que continuava a lamuriar, sem dar a mínima para quem estava por perto: “Mundo mudado!...

A prefeitura, em razão de uma decisão, perdeu a competência de disciplinar o comércio e a locomoção de pessoas... Competente, agora, é o Estado...” “Deus meu!...” – chegou a dizer, ainda que não tivesse olhado para o seu interlocutor. Interlocutor que prosseguia: “Já pensou se o morador, diante do lixo espalhado por toda sua rua, resolve bater à porta do gabinete do governador, para que este tome as devidas providências?” Gargalhou o octogenário, o que atraiu a atenção de uma moça que acabara de se aproximar, também com pressa, e chegou a sorrir não para ele, mas do que a decisão judicial provocou. “Uma decisão desinformadora, faz persistir as incertezas, bagunça o já bagunçado viver, além de apimentar o já apimentado ânimo político”.

Luís, então, imitou a moça, e sorria debochadamente. Talvez, com a igual intenção dela. Pois qualquer recém-iniciado no curso de Ciência Jurídica saberia que a liminar concedida ao Ministério Público destoa por completo da verdade jurídica, e segue por um caminho sem qualquer bússola de direção, ainda que tenha como meta combater o avanço da doença, e venha no sentido de evitar a aglomeração.

Afinal, o decreto estadual é mais rígido, mais adequado para o momento vivido. O senhor tinha as mãos no rosto, quase na altura dos olhos, cujo verde iluminava o palco de íris, em contraste com o arco-íris que riscava o céu, meio fechado por nuvens escuras que saltitavam de um lado para outro, quase a uma gangorra, dessa que se vê desgovernada, em meio a ondas de solavancos como se fosse uma montanha-russa.  

Montanha-russa preste a sair-se dos trilhos, por força do negacionismo ameaçador, e da falta de direção, cujo comando se encontra descomandado em razão da inabilidade e também da insensibilidade norteadora das falas de quem se apresenta como comandante. “Pobre Estado!” – salientou a moça. “Pobre povo!” – completou o senhor, com suas observações corretíssimas, em especial sobre a referida decisão.

Decisão judicial tem que ser cumprida. Não apenas por um ou outro. Mas por todos, ainda que reprovada fosse, até por conta do já assentado pelo STF e do que é legal e legítimo. Cumpri-la tão logo os ponteiros chegassem a hora marcada para o toque de recolher. Daí a pressa. Pressa para não ser multado. Valor que poderia fazer falta ao Luís, até porque carece de tudo que possa vir a juntar para quitar a dívida com o hospital, onde sua irmã, bem mais de idade, ficou internada por conta do vírus, que lhe afetou parte substanciosa de seu pulmão, ameaçava alcançar outros órgãos, sem que ela tivesse forças para resistir.

Infelizmente, somou-se a tantos outros que tiveram a vida ceifada. Ilutada, a família se abateu, tal como ao pugilista grogue em um dos cantos do ringue, depois de ter recebido um certeiro direto no queixo. Vê-se perdido quanto à própria sociedade. Pior que o barquinho a deriva em alto-mar, empurrado de um lado para outro pelo vento, sem roteiro e desacompanhado de “script”, mesmo que já se tenha um ano de pandemia, uma vez que não se tem planejamento de coisa alguma, agravado pela ausência de um roteiro-nacional, em plena correnteza da insensatez governamental, com o redemoinho da negação a levar de roldão a esperança que ainda se tem em meio à água de uma decisão destrambelhada. É isto.

 

Lourembergue Alves é professor universitário e analista político.          



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