Herbert de Souza nasceu em 3 de novembro de 1935, em Bocaiúva (MG), e atravessou a história brasileira como quem carrega uma sirene acesa: lembrando que a fome é hoje, que a dignidade não pode esperar, que cidadania é verbo. Sociólogo, militante e exilado político, Betinho transformou biografia em método e fragilidade em convocação coletiva. Seu legado volta com força sempre que o país pergunta por onde recomeçar.
Filho da classe média mineira, formou-se em Ciências Sociais e mergulhou na ebulição do pré-64. Veio o golpe, veio o exílio — Chile, Canadá, México — e, com eles, um laboratório de democracia vivida: redes de solidariedade, análise crítica do Estado, aprendizado sobre como a sociedade civil pode ocupar a cena pública sem pedir licença. Ao retornar, fundou o Ibase, instituto que ensinou gerações a ler orçamentos, fiscalizar políticas e traduzir sociologia para o cotidiano. Sem jargões, Betinho falava de estruturas a partir de pessoas; e de pessoas sem perder de vista as estruturas.
Nos anos 1990, em plena abertura democrática, sua voz ganhou um país. “Quem tem fome tem pressa” — a frase é simples, mas produz um terremoto moral. A Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida pôs comitês em cada esquina, arrecadou alimentos, mas fez mais: ensinou que a fome não é fatalidade, é decisão política; que donativos ajudam, mas direitos libertam; que a urgência deve conviver com a construção de políticas universais. Betinho convocava sem patrulha, somava sem aparelhar. Criou um estilo: mobilização horizontal, fé na sociedade, transparência radical.
Sua militância pela ética pública é outro capítulo. Em tempos de decepções em série, propôs pactos de decência que, se parecem óbvios, é porque ele os tornou senso comum: o dinheiro público é público; a corrupção mata; participação social não é decoração. Ao mesmo tempo, recusou o moralismo punitivo: queria instituições fortes, controle social e um Estado capaz de realizar direitos — saúde, educação, trabalho — sem confundir eficiência com desumanidade.
Betinho não romantizou a solidariedade. Sabia que ela pode ser desculpa para um Estado omisso. Por isso, insistiu no duplo movimento: sociedade mobilizada e políticas duradouras. A campanha da fome, lembra quem viveu, tinha pressa e projeto. Pressa no prato, projeto no orçamento. Pressa na cesta básica, projeto no SUS e no Bolsa-Família que viria depois. O gesto assistencial e a reforma estrutural, juntos.
Há ainda a dimensão íntima, que nunca foi adereço. A hemofilia e o HIV o colocaram numa fronteira de estigmas. Em lugar de se ocultar, tornou pública a própria condição: enfrentou preconceitos, defendeu o SUS, humanizou o debate sobre Aids em um país atravessado por medo e ignorância. Seu corpo doente não foi espetáculo, foi argumento: a vida concreta como prova de que direitos salvam pessoas.
Em tempos presentes, em que o Rio de Janeiro prova uma dor deletéria, vale perguntar o que aprender com ele num Brasil de 2025, mais digital e mais desigual. Primeiro, que a fome — material e simbólica — continua não aceitando postergações. Segundo, que transparência e participação são remédios contra o cinismo. Terceiro, que nenhuma inovação tecnológica substitui a velha lição política: comitês de vizinhança, associações, conselhos, redes de cuidado. Por fim, que ética pública não nasce de sermões, mas de práticas que garantem o básico a todos.
Betinho gostava de repetir que “cidadania é o direito de ter direitos”. A frase parece tautologia até que se olha à volta. Ela convoca a todos para uma quadra de luta permanente, objetivando a que ninguém seja obrigado a desistir da altivez para sobreviver. Celebrá-lo é assumir um compromisso simples e exigente: fazer da urgência um começo, e do começo, política. Porque quem tem fome — de pão, de justiça, de futuro — continua tendo pressa.
É por aí...
Gonçalo Antunes de Barros Neto (Saíto) ocupa a Cadeira 7 da Academia Mato-Grossense de Letras, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT) e tem formação em Filosofia, Sociologia e Direito.


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