O governo federal publicou, no último dia 26 de junho, um decreto que altera regras de concessão, manutenção e revisão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), destinado a idosos com mais de 65 anos e pessoas com deficiência em condição de baixa renda. À primeira vista, o texto parece uma atualização burocrática, mas carrega um risco concreto de exclusão social, justamente de quem mais depende da assistência pública para sobreviver.
Entre os principais pontos, o decreto redefine o conceito de renda per capita, que agora pode ser "igual ou inferior" a ¼ do salário mínimo — antes, era apenas inferior. Na prática, esse ajuste amplia formalmente o acesso, mas também abre margem para confusão operacional e interpretações restritivas nos sistemas automatizados.
Outro ponto sensível é a revisão do conceito de renda familiar bruta. Rendimentos como outros BPC recebidos na mesma família, indenizações por desastres e previdência até um salário mínimo são excluídos. Por outro lado, o decreto veta, de forma explícita, a possibilidade de acumular o BPC com benefícios como o Bolsa Família — um golpe direto na subsistência de famílias extremamente pobres.
Talvez o ponto mais preocupante esteja na nova escalada de exigências burocráticas. A partir de agora, exige-se registro biométrico, CPF regularizado e atualização cadastral a cada 24 meses. O não cumprimento desses requisitos, dentro de apenas 30 dias após notificação, leva à desistência automática do pedido — algo especialmente cruel se considerarmos a realidade de muitos idosos e pessoas com deficiência que vivem sem acesso regular à internet, sem apoio familiar e, em muitos casos, sequer possuem documentos atualizados.
As revisões, que antes tinham periodicidade clara (a cada dois anos), passam a ser contínuas, com prazos flutuantes e possibilidade de bloqueio imediato caso o beneficiário não se defenda a tempo. A insegurança se instala: o benefício que deveria garantir estabilidade e dignidade passa a depender de uma série de respostas rápidas a notificações que, muitas vezes, nem chegam aos destinatários.
O veto à acumulação com o Bolsa Família tem efeito devastador. Grande parte das famílias que possuem um idoso ou uma pessoa com deficiência também depende do Bolsa Família para sobreviver. O raciocínio do decreto parte de uma falsa ideia de que os valores seriam suficientes individualmente. No entanto, basta uma conta simples para ver o erro: uma família em que duas pessoas vivem com R$ 600 do Bolsa Família ainda possui uma renda per capita de apenas R$ 300 — abaixo do ¼ do salário mínimo (hoje R$ 353). Portanto, o direito ao BPC deveria, sim, se manter.
O problema é que, embora a renda continue dentro dos critérios, a vedação ao acúmulo funciona como uma barreira automática: gera negativas, suspensões e mais judicialização. Na prática, o ônus da prova e da regularização recai todo sobre quem já vive na precariedade.
O decreto reflete uma tendência silenciosa, mas perigosa, de transformar a proteção social em uma corrida de obstáculos burocráticos. O BPC não é um programa assistencial qualquer — é um direito constitucional, reconhecido como instrumento de dignidade mínima para quem não pode prover o próprio sustento.
Se o objetivo é aprimorar o controle e coibir fraudes, há outros caminhos, muito mais justos e eficientes. É urgente implementar campanhas massivas de orientação, reforçar mutirões de atualização cadastral, levar equipes volantes às comunidades mais isoladas e, principalmente, rever a regra que veda o acúmulo com o Bolsa Família.
Além disso, é indispensável tornar os processos mais transparentes e humanizados, adotando notificações claras, com prazos razoáveis e múltiplos canais de contato — não apenas um aplicativo que muitos sequer conseguem acessar.
O Brasil tem hoje quase 5 milhões de pessoas amparadas pelo BPC. Fragilizar esse instrumento é ignorar que, para quem vive na pobreza extrema, a perda de qualquer auxílio não é um mero contratempo administrativo — é fome, desamparo e invisibilidade.
Burocracia não pode ser sinônimo de exclusão. Se queremos uma sociedade mais justa, o Estado precisa ser parte da solução, não mais um obstáculo na vida de quem já carrega tanto.
*João Badari é advogado especialista em Direito Previdenciário e sócio do escritório Aith, Badari e Luchin Advogados
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