O céu continuava carrancudo. Nuvens escuras deixavam-no mais bravio, amedrontador, sem o seu brilho corriqueiro, tampouco com a presença da Íris a balançar no enorme arco, que cortava a abóbada. Isto há algum tempo. Mais de ano, menos de quatro. Nada dele mudar. Parecia tê-lo esquecido de seu semblante natural. Uma porção de coisas contribuía para isso, e uma delas, sem dúvida, era o desprezo o vento da intolerância. Vento que apaga os vestígios da gaivota a caminhar pela fina areia da praia, cujos pés não mais eram acariciados pelas águas. Pois, até mesmo estas, perderam o viço, perderam a força.
Talvez pela movimentação que teima em remar contra a maré, distanciando-se da diplomacia, da cortesia e da sensibilidade, o que valoriza a sandices, insanidade. Aliás, cabem aqui trechos das falas de personagens do romance “A flor de Lótus e o calar do silêncio”, recentemente publicado, originado da pesquisa que resultou também no livro “1967: sublegendas, conflitos e quase impeachment”, que diz: “loucuras existiram, existem e existirão... Jamais podem ser evitadas...” Instante em que uma pessoa acabara de se sentar, e balbuciou: “Precisamos registrar o aparecimento da loucura... Precisamos igualmente transmitir o nosso testemunho às gerações... Transmiti-las ao menos um pedacinho dos destroços da verdade... Aí sim, não teremos vividos inteiramente em vão”.
Trechos apropriados para o momento em que se está vivendo, com o acirramento das agressões, a taciturnidade diante das apelações, enquanto o diálogo se esvai certamente afugentado pelo mesmo vento que trás a intolerância, e esta tenta arrastar para o abismo a razão que, apesar das agruras, mantem-se ereta, sem se curvar. Afinal, ela, a razão, é a única capaz de se opor a desrazão. E, de imediato, brota a semente da sensatez, a qual se fortalece com o crescimento do caule, de onde saem os galhos da discussão, que se abre com a folha da liberdade, e prospera na relação dos que se colocam no campo da política, um campo essencialmente humano, onde a relação é entre iguais. Pois jamais se viu pardais a deliberarem.
Proliferam, desse modo, as ideias, os posicionamentos, como frutos da árvore da democracia. Ainda que se tenha, e sempre se tem quem procura desfolha-la, como também sufoca-la pelo abraço da parasita, a qual suga toda a tua seiva, com o fim de leva-la a morte. São bandos e mais bandos de parasitas, deixando o campo, antes coberto pelas gramíneas banhadas pelo orvalho da noite enluarada, semiárido, enfraquecido, quase desabastecido pelos raios solares e pela água, que vem das montanhas acobertadas por pequenas, médias e grandes arbustos, com suas ramificações a formarem corredores por onde escorrega o líquido que vem de mais adiante.
Lá de seu nascedouro entre três ou quatro pedras, e aflora tão limpinha, que se podem ver as pedras brilharem ao fundo, como se estivessem a iluminar todo o ambiente para que minúsculos seres, invisíveis, pudesse brincar de pega-pega ou de esconde-esconde, a exemplo do que faziam as crianças no interior, e de outra época, bastante distante da atual, quando reinava a parceria e a amizade, era o que parecia ser.
Uma época em que o céu também ficava carrancudo, a dificuldade amargava o viver. Mas, logo em seguida, se modificava todo, com o brilho a sair de suas entranhas, destacava-se em brincadeira de roda feita pelas nuvens brancas e escuras. A situação, porém, agora, é bem outra, bastante diferente daquela pretérita, com as sandices vindas em procissão com as Fack New, em meio à pandemia.
Tumultua o ambiente. Deixa-o cinzento, sem cor e opaco, ao mesmo tempo em que escapam entre os dedos das mãos a esperança e a alegria, como se estivesse, talvez esteja mesmo, em uma aurora sem dia, quase machadiano. Nem tudo, felizmente, está perdido, a despeito da violência que provoca a divisão e faz crescer a intolerância. Afinal, como bem escreveu Edith Stein, assassinada pelo regime nazista, citada no romance mencionado lá atrás: “Nossa maior dívida de gratidão é com aqueles que neste tempo desumano confirmam o humano em nós, que nos encorajam a não abandonar nossa única e imperecível possessão – nosso self íntimo”. Nem tudo, realmente, está perdido. É isto.
Lourembergue Alves é professor universitário e analista político.
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