• Cuiabá, 28 de Setembro - 00:00:00

Aulas presenciais: ainda não é hora de voltar

Dia após dia tem ficado cada vez mais nítido a completa desorientação, ou descontrole, de entes públicos quando o assunto, para não entrar em outros departamentos, é a educação e o consequente retorno às aulas presenciais de forma mais pontual nos ensinos fundamental e médio. Mesmo na beira de completar quase um ano do início de estado de pandemia, que sacode o mundo, ainda é possível deparar com gestores públicos totalmente desconexos com a realidade.

É sabido, para quem quer enxergar, que as instituições de ensino ficaram perdidas e a mercê sem coordenação geral. Faltou articulação nacional do Ministério da Educação, e, na tentativa de salvar o barco, o Conselho Nacional de Educação tem emitido resoluções para as secretarias de Educação dos Estados e municípios.

Na verdade, o MEC, pelo jeito, e diante das trocas de ministros, do tipo seis por meia dúzia, não viu nem a banda passar. A realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que é uma organização direta do ministério, foi apenas mais uma comprovação da completa falta de sintonia com os contornos provocados pela pandemia. É claro, e pra variar, não foi levado em consideração o aumento de casos e nem de mortes causadas pela Covid-19. O que se viu, nos dois domingos de provas, foi aglomeração e falta de respeito com o cidadão e a cidadã, a maioria jovem.   

Logo, marcar retorno presencial, que seja para fevereiro, março ou abril, e até mesmo escalonado, no sistema de rodizio, é no mínimo bobeira, até porque não existe ainda literalmente um planejamento que garanta uma cobertura vacinal eficiente.

Os grupos foram divididos pelas autoridades sanitárias e epidemiológicas, de acordo com cada prioridade, para que possam receber o imunizante, só que não tem vacina suficiente nem mesmo para os profissionais da saúde que estão na chamada linha de frente de atendimento às vítimas da Covid-19.

E se não tem para eles, que enfrentam diuturnamente a demanda causada pelo vírus, imagina para outras categorias e situações. Nem os idosos que estão institucionalizados Brasil a fora, e são colocados como prioridade, não receberam a dose da vacina na totalidade.

Mesmo assim, há insistência de setores pedindo o retorno das aulas presenciais, como se tudo estivesse resolvido. Não tem retorno à normalidade e nem ao tal do ‘novo’ normal, porque isso não existe. O que temos é outro tempo, com uma peste silenciosamente nos rodeando.

É verdade que dezenas de centenas de pais com filhos em creches e em idade escolar, de forma geral, precisam trabalhar e dependem do salário para a sobrevivência da família. E a volta das crianças para os espaços escolares resolveria muitos problemas e daria mais tranquilidade.

No entanto, o perigo é eminente porque cada aluno, assim como o(a) professor(a), tem uma realidade e rotina diferente e esse contato agora, sem, pelo menos, o mínimo de proteção vacinal, pode agravar o quadro de contágio e piorar a situação. Para o filósofo e educador Mário Sérgio Cortella, antes de decidir pelo retorno é necessário que as autoridades façam como os trens antigamente: “pare, olhe e escute”, nesse caso a ciência.

Aí, o ponto de discussão, ou de decisão, não é, e jamais pode ser, voltar ou não voltar. Esse tema exige cuidados, humanidade e responsabilidade, porque, caso contrário, e se assim não for feito, é contribuir para a completa instalação do caos.

Reabrir as unidades de ensino para receber os alunos presencialmente movimenta outras áreas, como o transporte público. Dessa forma, o retorno não é tão simples como possa parecer. Diria que é assanhar animal feroz com vara curta, sabendo que esse inimigo pode ser letal.

Retrato de tragédias, como a que acontece em Manaus, no Amazonas, e a divulgação do colapsamento do sistema de saúde em Rondônia acredito que sejam suficientes para ilustrar, uma vez que o próprio Mato Grosso tem recebido pacientes do vizinho Estado.

Nem o sistema público e nem os hospitais particulares dispõem de capacidade para atender a população em tempos considerados de normalidade e nem tão pouco sob a égide da pandemia do coronavírus que já apresenta em vários países, como no Brasil, variantes e mutações. Logo, o perigo existe e, como é invisível, está em qualquer lugar.

Então, ainda não é a hora de retornar às aulas presenciais. É preciso um consenso razoável, até porque estudos científicos apontam que a pandemia está em estágio elevado no país. Os professores e professoras, e também os demais profissionais do ensino, especialmente da rede pública, apesar da falta de reconhecimento e valorização por parte da maioria  dos gestores públicos, sempre estão na luta em prol de educação de qualidade e inclusiva.

E agora o tom dessa batalha, na trincheira do dia a dia, é também, e principalmente, garantir a vida. E para isso, com base nos estudos e encaminhamentos científicos, é necessário que os professores, professoras e os outros trabalhadores e trabalhadoras que compõem a comunidade escolar ativa, pública e privada, juntamente com os alunos, precisam, antes de definir pelo retorno às salas de aula físicas, ter acesso à vacinação. Antes disso, não é hora do retorno das aulas presenciais.

Indiscutivelmente, a pandemia forçou o aumento da utilização de tecnologias, justamente porque deixou de ser apenas uma opção ou inovação de professores e colégios no trato didático-pedagógico. As plataformas digitais viraram salas de aula e passaram a ser vistas como instrumentos importantes, adequados e obrigatórios no processo de ensino durante o distanciamento social. A lógica empregada nessa forma emergencial de ensino à distância foi de preservar a vida de todos.

E aqui não discorro sobre acessibilidade tecnológica, que é um assunto denso, pontual, complexo e de vontade e posição política, até porque muitos alunos, especificamente os de extratos sociais menos favorecidos, não têm acesso às salas virtuais. Como ficam impedidos de participar e acompanhar os estudos, e para que sejam menos prejudicados, instituições de ensino e professores apelam para a utilização de aulas/atividades por e-mail e até via whatsApp, dos aparelhos celulares dos pais ou responsáveis, além da entrega em domicílios, ou na unidade escolar, de conteúdos trabalhados semanalmente.

Mesmo assim, sabendo dessa conjuntura absurdamente antagônica, ainda não é hora do retorno das aulas presenciais, nem mesmo nas escolas particulares, porque, diferente da visão turva e sem noção de negacionistas, é preciso continuar lutando pela vida. E neste tempo de incertezas e de muito perigo apenas a ciência reúne condições para dizer qual caminho devemos seguir. E assim, vejo que é preciso, “enquanto o tempo acelera e pede pressa, eu me recuso, faço hora, vou na valsa. (porque) A vida é tão rara”, como canta Lenine, em ‘Paciência’.

Alguns podem ter pressa e até negar o contexto mundial e continuar dizendo que é apenas uma ‘gripezinha’, ou ‘e dai?’ ‘não sou coveiro’ para resolver essa situação, e, infelizmente, mesmo diante dessa postura que não poderia se enquadrar na fala de um agente público, é preciso que tenhamos paciência e equilíbrio.

Um ente público que gasta R$ 15 milhões em leite condensado, R$ 31 milhões em refrigerantes e mais de R$ 2 milhões em gomas de mascar, conforme dados do cartão corporativo do governo federal, na elaboração de sobremesas para bajuladores e comensais políticos, desumanamente em ano de pandemia,  possivelmente não sabe, ou certamente não quer saber, que o perigo ronda e, geralmente, na pirâmide social, ataca brutalmente quem mais precisa da efetivação e do real atendimento das políticas e dos serviços públicos.

É por isso, e por tantas outras coisas importantes, que ainda não é hora de voltar. Qualquer retorno será falho se não tiver vacina suficiente para a população, composta por médicos, enfermeiros, dentistas, professores, pedreiros, policiais, idosos, cozinheiros, estudantes, enfim para todos que compõem a cidade, a sociedade.

É preciso fazer isso, e não apenas elaborar decretos e pseudo-programações de retorno, porque a aglomeração será inevitável.  Programar e fazer a compra de vacinas não é caro, e mesmo que fosse é dever e obrigação de quem administra o Estado. Caro e cruelmente absurdo é comprar com dinheiro público goma de mascar e leite condensado, entre outros itens, que são supérfluos, para fazer, entre outras coisas, chocolates, ou que seja só brigadeiros. Isso verdadeiramente é um horror, é um escárnio e vai de encontro com o que temos como princípios morais.

Sendo assim, ainda não é a hora de retornar com as aulas presenciais e nem confiar no uso de tecnologias como suporte educacional, através do ensino hibrido, mesmo que siga normas e protocolos de biossegurança, para retomar o movimento físico das unidades escolares. É fantasioso dizer que não vai ter aglomeração, e não é inteligente, sem vacina, fazer o retorno das aulas presenciais tendo como base e fundamento o funcionamento de bares e restaurantes.

As pedagogias de atuação desses setores são completamente diferentes. Não existe comparação nessas atividades, até porque mesmo com rodizio de alunos durante a semana vai ter aglomeração. O contágio e proliferação surgem do contato, e não é o escalonamento que vai evitar a circulação da doença. Só a vacina tem esse poder de frear. Não adianta jogar no colo dos professores e das professoras, e até dos pais, a responsabilidade pelo retorno presencial.

No mais, e outra coisa importante que deve ser esclarecida e respondida: com esse retorno sem vacina como esses “especialistas” em logística em período pandêmico pensam em fazer o atendimento/aula para os alunos que os pais, mesmo com sacrifícios, optarem por não mandar os filhos para a escola? Os professores e professoras vão receber acréscimos salariais para essa nova demanda? Ou esse problema, mais uma vez, é todo deles, dos professores? Só sei que quem arma cama de gato também tem que assumir o peso da própria culpa. 

 

Álvaro Marinho é professor-mestre em Educação e jornalista em Cuiabá. 



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