A rua central estava aparentemente deserta. O número de pedestres não preenchia todos os dedos das mãos. Havia igualmente pouquíssimos carros. Resultado: lojas quase desertas. Não era por conta do rodizio de automóveis, tampouco o de entrada de pessoas em mercados, lotéricas e bancos. Até porque tais rodízios já tinham sidos suspensos.
Parecia ter sido esta a conclusão em que chegara o homem, cabisbaixo e pensativo, sentado desconfortavelmente à frente de sua casa, espremida entre duas outras, com platibanda e a parede toda branca, porta e janelas meio amarelada e batente azul. Tinha-se a impressão que a preguiçosa, mais descuidada que velha, não mais lhe oferecia o conforto necessário. Volta e meia, ele acariciava o próprio queixo. Por vez, arregalava os olhos, sem perder a condição de absorto. Nada o incomodava. Nem mesmo o leve vento que teimava em desalinhar seus finos cabelos, um tanto grisalhos e ondulados pelo gel. Muito menos o cheiro de álcool que lhe chegava as narinas. Situação inusitada. Comum no pretérito mais que passado. Bastante distante, portanto, dos dias vividos, em meio a crescente violência.
Todo cuidado era pouco. Ele, porém, aparentava não estar nem aí. Algo, no entanto, insistia em tirar seu sossego. Um sossego duramente conquistado. Agora ameaçado. Pois soubera, dias desses, da morte de um vizinho; em seguida, a de um parente distante; antes deste, a de um amigo de infância; e, há três ou quatro horas, durante o seu café da manhã, a televisão tornava público a lista de contaminados, internados em enfermaria e em UTIs e de falecimentos. Todos, inclusive o amigo, que a um tempão não o via, sequer ouvira falar sobre, foram abatidos pelo mesmo vírus. Um vírus, cujo anuncio de sua passagem vem sendo feito pelos rastros de destruição que provoca em todo mundo.
O Brasil foi um dos últimos países em que o Covid-19 marcou presença, e o Mato Grosso um dos derradeiros Estados brasileiros a ser atacado. Suas autoridades, então, tiveram tempo para se prepararem, para se armarem e enfrentá-lo. Mas, infelizmente, o preparo e o planejamento, imprescindíveis, não ocorreram. Governador e prefeitos “venderam” a ideia de que tudo estava sob controle (e não estava), enquanto o presidente da República posava de atleta imbatível, e sem papas na língua, fingia desafiar o inimigo invisível, chamando-o de “gripezinha” e de “simples virose”, no mesmo instante em que a sua volta, vários de seus auxiliares diretos engrossavam as fileiras dos acometidos pelo vírus.
São tantos, e tantos que as raras vagas existentes nos hospitais públicos e privados se dão em razão das mortes de quem se encontravam internados. Promessas são incansavelmente repetidas, caso cumprido realmente, teria um batalhão de leitos. Leitos imaginados, construídos pela fantasia da demagogia, contabilizados com tabuinhas do populismo. Rosário de cabeceira de gestores, cujo preparo e habilitação podem ser comparados as de um passageiro que se vê forçado, em pleno voo, a assumir o comando da aeronave descontrolada, em substituição ao piloto e toda a tripulação, abatidos por desmaio, sem nunca ter ousado guiar o fusca 1600 de sua própria família.
As ondas da pandemia se agigantam. Tornam-se mais mortíferas. Causa, porém, estranheza a existência da insensatez, da imprudência no negativo da fotografia, espelhada em aglomerações nos salões das boates e pelas ruas, no exato instante em que o governante veta a obrigatoriedade do uso de máscaras em locais onde se reúnem várias pessoas. Ainda assim aplaudido. É o contentamento por pão e circo. Apenas por circo. Afinal, o responsável pela massa deixou de comparecer ao trabalho. Nocauteado pelo Covid-19. Enfurecia o céu. Escureciam as nuvens. Justificava-se a impaciência do homem, preso a sua cadeira. É isto.
Lourembergue Alves é professor universitário e analista político. E-mail: lou.alves@uol.com.br.
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