• Cuiabá, 21 de Novembro - 00:00:00

O desafio chileno

Durante o século XX, o Chile ficou conhecido como um país das inovações políticas na América Latina. Considerado por muitos um país distinto da tradição "populista" dos anos 1940 e 1950 e precursor de algumas experiências como a Frente Popular nos anos 1930-50, a Unidade Popular, entre os anos 1970-73, o neoliberalismo e a Concertación, o Chile novamente apresenta ao mundo latino-americano uma nova esquerda no poder. No último domingo, Gabriel Boric tornou-se o presidente eleito mais jovem da história chilena, ao vencer o pleito com 35 anos de idade. Boric derrotou o candidato da direita, José Antonio Kast Rist, obtendo 56% dos votos. Nascido em Punta Arenas, às margens do Estreito de Magalhães, o jovem político de origem croata, promete liderar "o processo de mudança e transformação que se aproxima", a partir de uma "gradação necessária".

Embora muitos estudiosos chilenos rechacem a ideia da especificidade e da especialidade chilena na região, certo é que suas experiências influenciam diretamente no debate acerca do desenvolvimento latino-americano. No Brasil, de Joaquim Nabuco a Fernando Henrique Cardoso, muitos intelectuais olharam e olham para o Chile pensando a modernidade nacional e global.

Na atual conjuntura, o povo chileno vem convivendo com uma nova transformação social. Trata-se do processo de formulação de uma nova constituição, adequada aos tempos democráticos. Herdeira do legado pinochetista, a sociedade chilena modernizou-se radicalmente a partir dos anos 1980, quando sua experiência neoliberal privatizou diversas esferas da vida. Tal modelo de desenvolvimento reformou-se após a derrota da ditadura, no plebiscito de 1988. A partir da chegada da Concertación ao poder, alternando com as vitórias de Sebatián Piñera no século XXI, o Chile alcançou o posto de país mais desenvolvido da América do Sul. Embora esse modelo de desenvolvimento tenha aperfeiçoado, significativamente, diversas áreas da sociedade, seu calcanhar de Aquiles foi a manutenção e ampliação da desigualdade social, considerada uma das maiores do continente, juntamente com o Brasil. Foi esse o gatilho para a explosão das Revoltas de 2019, que assim como nas Manifestações de Junho de 2013, no Brasil, eclodiram com o aumento das passagens do metrô. De lá para cá, atravessando o tempo da pandemia, a sociedade chilena aprovou o processo da nova Constituinte e, agora, elegeu o novo representante que auxiliará na liderança da efetivação deste inovador processo.

Dentre os inúmeros desafios, Gabriel Boric terá que lutar pela aprovação da nova constituição, que em diversos pontos condiz com a sua leitura de mundo e seu projeto de poder. Além da luta pelo reconhecimento social de diversos setores da sociedade chilena, historicamente relegados ao segundo plano da cidadania, a possível nova carta tentará criar um modelo de Estado de Bem-Estar social, adequado aos novos paradigmas do século XXI, dentre eles, o desenvolvimento sustentável, o ambientalismo e as pautas identitárias. Em muitos aspectos, tais lutas vêm ganhando cada vez mais espaço no Chile e mundo afora. Todavia, no caso específico chileno, um importante desafio deverá ser equacionado.

Ao levarmos em consideração as experiências da esquerda latino-americana no século XXI, percebemos que os três principais modelos fracassaram na luta pelo desenvolvimento, apesar de terem conquistado melhorias em diversas áreas sociais. O chavismo, o kirchnnerismo e o lulopetismo foram projetos que diminuíram os índices de miséria na região em tempos de alta das commodities, mas não colocaram Venezuela, Argentina e Brasil na rota da modernidade. Ao contrário, esses três países não acompanharam a industrialização 4.0 do século XXI, mantendo-se presos aos seus modelos agro e petro-exportadores, com óbvias diferenças entre si.

A partir de 2022, Boric terá pela frente o dilema de diminuir a desigualdade social chilena sem enfraquecer a capacidade produtiva do país, consolidada através de uma larga ampliação de acordos comerciais com diversos países e blocos econômicos. A abertura da economia chilena criou diversas cadeias produtivas e facilitou a entrada de diversos equipamentos e tecnologias de ponta. Sem qualquer comparação e relação com o Chile de Salvador Allende, deposto em 1973, o governo de esquerda de Boric deverá equilibrar expansão dos gastos sociais com desenvolvimento da produtividade do trabalho na nova era da sociedade do conhecimento. Advindo dos movimentos estudantis que fizeram o Chile tremer politicamente, o novo presidente terá pela frente a chance de iluminar e influenciar um novo horizonte para o continente, ainda preso a uma dicotomia política obsoleta, que insiste não abandonar o século XX.

 

Victor Missiato é doutor em História, professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília. Membro do Grupo de Estudos Intelectuais e Política nas Américas (Unesp/Franca).



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