• Cuiabá, 21 de Novembro - 00:00:00

A Histeria

Outro dia, sentados em um banquinho na praça central da cidade, dois homens conversavam animadamente. Eram velhos amigos, e se encontravam quase rotineiramente, em igual lugar. Falavam de um tudo. Alegremente e cavalheiramente. Começaram o bate-papo por falar deles próprios, depois dos amigos comuns há muito não vistos, estenderam-se aos vizinhos, passaram por temas triviais, a exemplos de futebol, bebidas e músicas, e, por fim, tocaram no desempenho e no comportamento do presidente da República. Daí a pouco, não mais do que três ou quatro minutos, o desentendimento, com apontamentos fora de contexto, e completamente desacompanhados de qualquer argumentação. O clima descontraído e festivo de antes se desfizera inteiramente. O sorriso de ambos desapareceu. A fisionomia amiga que cada um cultivava cedeu lugar a descortesias, a falta de gentilezas.  

As frases não eram mais concluídas, pois o outro sempre achava um jeito de interrompê-las, ou abortá-las. As pessoas, que se encontravam por perto, que já os tinham deparado com eles naquele lugar costumeiro, inclusive um casal de namorados, se assustaram. Olharam-se sem nada entenderem. Seus gestos eram de reprovação. Isto no início. Pois, de repente, ocorreu o não aconselhável, embora inevitável, a identificação de certa divisão entre aquela pequena platéia. Uma parte dela tomara partido de um deles, enquanto a outra se mostrava favorável ao segundo.

Gestos rudes se multiplicaram. Termos chulos se afloraram. “Talvez seja este a tal balburdia de que falara o ministro da educação” – chegou a dizer o professor, o qual despregara os olhos das páginas de “O idiota”, de Fyodor Dostoievski, para melhor acompanhar o que acontecia a sua volta, com gente a tumultuar as falas. Distintamente do personagem da obra que tinha as mãos, cujo teor narra a beleza de um ser humano, comum, mas de uma visão muito própria de todos que o rodeiam, e que não obedece aos cânones do realismo, ainda que seja fantasmagórico. De soslaio, ele notou que o vendedor de picolés, sempre grudado ao seu carrinho, sorria levemente, no exato instante em meneava a cabeça em sentido horizontal, como se discordasse dele. E, de fato, discordava mesmo. Com total razão. O professor reconheceu o próprio erro, uma vez que o ministro não se referia aquela cena, nem a outra qualquer, embora a da praça pudesse ser igualmente presenciada no espaço universitário, pois dissera sem lastro algum, ainda que o dia a dia do Campus não lhe seja algo desconhecido.

O professor, sem entender bem o porquê, então, lembrou-se de narrativas lidas em uma ocasião em que debruçara sobre os relatórios da Comissão de Investigação, que atendia a demanda do artigo 7° do AI-1. “Ela, a comissão, era um instrumento inibidor a liberdade, além se servir, até porque foi criada para este fim, para o patrulhamento ideológico do regime” – observou o professor. Agora, o vendedor de picolés concordava com ele, e se manifestou com seu pitoresco gesto, desta feita de modo vertical, com movimentos leves, acompanhados de um sorriso mais aberto. O professor também sorriu. Sorria como continuidade do diálogo que teve com o vendedor. Mas, nem assim, pudera esconder as expressões de seu rosto. Diferentemente, portanto, das que apareceram no semblante de três estranhos em um trem a caminho de Petesburgo, um deles, o príncipe Michkin, que acabara de voltar de um sanatório suíço onde permaneceu nos últimos anos se tratando de um problema de epilepsia.

Voltava a sorrir. Não mais para o vendedor de picolés, ainda que este se sentisse que fora para ele. Pois suas expressões demonstravam enorme preocupação com as cenas que se desenrolavam na praça, iniciadas por dois homens, antes amigos, e continuadas por uma porção de gente, que também se contentava com a simples posição de torcedor, justificada pelo conceito errado que tinha a respeito do ser patriota, e com a defesa histérica a um governante, mesmo diante dos erros gritantes dele. Ah!... Ufa!... É isto.

 

Lourembergue Alves é professor universitário e analista político. E-mail: Lou.alves@uol.com.br.



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