Paulo Lemos
Essa talvez seja a frase que melhor traduz o coração do pensamento de Gabor Maté sobre vícios. O médico, conhecido por sua abordagem humanista, propõe uma mudança de pergunta que desmonta a visão moralista do tema. Em vez de “por que o vício?”, ele pergunta: “por que a dor?”.
Essa simples inversão desloca o foco do julgamento para a compreensão. Diante de um comportamento compulsivo, o olhar comum é condenatório: “fraqueza”, “falta de caráter”.
Esse julgamento, porém, é uma cortina de fumaça. Ele não explica por que pessoas inteligentes e sensíveis se veem presas em ciclos autodestrutivos, nem por que a promessa sincera de “nunca mais” se desfaz em poucos dias. O moralismo grita “pare!”.
A clínica compassiva sussurra: “o que está doendo tanto que isso parece a única saída?”.
Para Maté, vício é qualquer comportamento que ofereça alívio imediato, mas que cause mal no longo prazo e do qual a pessoa não consiga abrir mão, apesar das consequências.
A definição é ampla e generosa: inclui desde o álcool e as drogas ilícitas até a rolagem infinita das redes sociais, a comida que não sacia, o trabalho que esgota, o consumo vazio.
A pergunta que emerge, incômoda e necessária, é: o que cada um desses rituais está tentando anestesiar?
A resposta, na visão do médico, quase sempre aponta para a mesma raiz: o trauma. E trauma aqui não se resume às grandes catástrofes. Inclui as microviolências cotidianas—o desprezo pelo choro, a repressão à sensibilidade, a frieza afetiva disfarçada de educação.
A criança que aprende que seus sentimentos são um incômodo cresce com um vazio: falta validação, falta pertencimento, falta amor incondicional. Anos depois, esse vazio pode se manifestar como um gole, um clique, uma compra, um prato a mais.
Não é casual que tantas pessoas com dependências carreguem histórias de abandono, negligência ou abuso. Mesmo em lares aparentemente perfeitos, é possível encontrar exigência excessiva, religiosidade opressora ou a simples indisponibilidade para o afeto.
Quando a dor interna transborda, o corpo busca uma válvula de escape. De fora, parece “fraqueza”. De dentro, é um grito de socorro abafado.
Enxergar a compulsão como um grito, e não como um defeito moral, não significa romantizá-la ou minimizar seu estrago. Pelo contrário: é levar a sério a profundidade do sofrimento.
Quem reduz tudo a “falta de vergonha” está, no fundo, dizendo: “não quero ver sua história; quero que você pare de me incomodar”.
Já a pergunta “por que a dor?” nos obriga a encarar o que ajudamos a produzir—crianças emocionalmente órfãs, adultos exaustos, laços frágeis.
Este é, no fundo, um debate sobre o tipo de sociedade que construímos. Uma cultura obcecada por produtividade, performance e consumo gera, em massa, pessoas esgotadas e desconectadas de si.
Quando adoecem na forma de vício, depressão ou ansiedade, o sistema oferece dois caminhos: medicalização rápida ou censura. Raros são os espaços de escuta verdadeira, onde a dor pode ser nomeada e acolhida.
A compulsão, então, funciona como um sintoma social: denuncia que algo está errado na forma como nos relacionamos—e a resposta ainda é tentar calar o mensageiro.
A proposta de Gabor Maté é radical porque é simples: trocar a lente da culpa pela lente da compaixão. Compaixão não é pena, nem é permissividade.
É a coragem de enxergar a pessoa por trás do comportamento, reconhecer o estrago sem negar a humanidade que há ali. É dizer, com gestos ou palavras: “não vou te reduzir ao seu vício; quero entender o que você viveu”.
Para quem sempre ouviu que não prestava, ser visto assim já é um primeiro passo na direção da cura.
No plano pessoal, essa mudança de olhar transforma a relação que temos conosco. Quantas vezes nos punimos mentalmente por repetir um padrão? “Não presto”, “nunca mudo”, “estraguei tudo”. Essa voz interior cruel não cura; só aumenta a dor e, com ela, a necessidade de fuga.
Quando começamos a perguntar “o que eu estava sentindo?” ou “de que eu tentava escapar?”, abrimos um novo caminho: em vez da autopunição, surge a possibilidade da autoescuta.
Isso não substitui terapia, tratamento ou apoio médico, mas cria o ambiente emocional para que essas ferramentas funcionem.
Quem acredita ser “um fracasso” busca no tratamento um castigo ou um milagre. Quem entende que lida com uma dor legítima chega com mais curiosidade e menos vergonha.
E a vergonha é o veneno que alimenta o isolamento—faz a pessoa mentir, esconder a recaída, afastar-se justo quando mais precisa de apoio.
A compaixão, ao contrário, abre a porta para a verdade.
No plano coletivo, esse olhar exige que repensemos políticas e discursos. A “guerra às drogas”, quando puramente repressiva, enche cadeias e cemitérios sem tocar na dor que alimenta o vício.
Comunidades atingidas pela pobreza, pelo racismo e pela negligência do Estado produzem feridas que buscam alívio onde for possível.
Criminalizar essas pessoas, sem enfrentar as causas, é uma forma violenta de culpar a vítima pelo próprio sofrimento.
O passo mais difícil—e libertador—é aceitar que o vício, em sua origem, foi uma solução de sobrevivência. Não a melhor, mas a que estava ao alcance.
A mudança real não nasce do ódio a si mesmo, mas de um misto de verdade e ternura: “reconheço o mal que isso me causa e, ao mesmo tempo, honro a dor que me fez chegar aqui”.
A mensagem final é ao mesmo tempo dura e esperançosa: enquanto tratarmos o vício como falha moral, continuaremos punindo quem mais precisa de cuidado.
Quando passarmos a vê-lo como tentativa desesperada de silenciar uma ferida, a conversa muda. A pergunta deixa de ser “como você pôde?” e vira “onde machuca?”.
A liberdade começa nesse instante—quando, em vez de se torturar com “por que sou assim?”, você se permite perguntar: “o que eu vivi que me trouxe até aqui? E com quem posso contar para aprender a não mais fugir da minha própria dor?”.
A compreensão não apaga o passado, mas acende uma luz. A compaixão não desfaz o caminho andado, mas constrói um novo chão, onde o vício deixa de ser uma prisão e se revela pelo que sempre foi: um sinal de que a alma pedia socorro.
Paulo Lemos é advogado criminalista e humanista.


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