Victor Missiato
O binômio liberdade e segurança, pensado para relacionar o pêndulo da modernidade, muitas vezes tende a relacionar maior controle social e estatal frente a menores direitos individuais em momentos de grandes crises políticas ou sociais. A instrumentalização da liberdade quase sempre é associada à impossibilidade de conter um dano mediante à necessidade de uma proteção superior. No presente artigo, destacarei a importância histórica da liberdade moderna como base fundamental para se pensar transparência, ética e direitos cidadãos nos novos tempos.
Herdeiros de diversas tradições ocidentais, os EUA estabeleceram suas liberdades como princípio fundamental de seu ordenamento social. No primeiro parágrafo de sua Constituição isso se faz presente: "Nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formar uma União mais perfeita, estabelecer a justiça, assegurar a tranquilidade interna, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral, e garantir para nós e para os nossos descendentes os benefícios da Liberdade, promulgamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América".
Atualmente, o liberalismo vive uma crise de ordem interna, resultante não de um sistema de oposição política como nos tempos do comunismo, mas, sim, de diversos movimentos e pensamentos ocidentais que questionam sua validade e abrangência. Muitas vezes associado a uma dimensão econômica excludente, o liberalismo nasceu a partir de uma série de dimensões morais. Segundo os filósofos Douglas B. Rasmussen e Douglas J. Den Uyl, liberdade de pensamento e expressão, somadas à concepção de tolerância, tornaram-se peças centrais das doutrinas liberais desde o seu início, no período do Iluminismo.
Em "Normas da liberdade: uma base perfeccionista para uma política não-perfeccionista", Rasmussen e Uyl defendem que a linguagem do liberalismo permanece ancorada com base em direitos. Sendo assim, o liberalismo pressupõe todo um arcabouço moral, ético, político e social, que privilegia o bem-estar de uma sociedade. Sua experiência cultural e política protagonizaram a formação de um aparato social e institucional, responsável por direitos e liberdades nunca vistos em termos humanitários.
A historiadora Lynn Hunt, em "A invenção dos direitos humanos: uma história", mostra como três documentos fundantes da modernidade estabeleceram a formação de um movimento em torno da igualdade baseada nas diversas liberdades modernas. Na conjuntura referente à Declaração de Independência dos EUA (1776), Hunt traz em sua Introdução a célebre frase de Thomas Jefferson: "Consideramos estas verdades autoevidentes: que todos os homens são criados iguais, dotados pelo seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre estes estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade".
Uma década depois, representando a nova nação americana na França, Jefferson influenciou alguns líderes a redigirem alguns parágrafos inspirados na Revolução ocorrida do outro lado do Atlântico. Provavelmente, em alguns dos jantares realizados no restaurante Le Procope, em Paris, palavras presentes na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foram inspiradas pela influência jeffersoniana. Em seu segundo parágrafo, a Declaração afirma que "o fim de toda a associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses Direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão".
Todavia, o que se seguiu adiante foi um grande derramamento de sangue em nome de liberdades que não correspondiam a uma universalidade jurídica e humanística. A escravidão ainda conviveu com ideais liberais por mais um século e o que hoje parece algo simples para se pensar a liberdade moderna, o sufrágio universal, institucionalizou-se na maioria dos países ocidentais somente no século XX. A dialética da modernidade ainda fez explodir no coração da Europa, culturas políticas totalitárias que combateram as ideias de liberdade em todas as suas formas, até meados do século passado.
Das agruras dos diversos tipos de escravismos, desigualdades e totalitarismos, algumas instituições conservaram sua presença histórica em defesa das liberdades humanas. Tanto a Constituição americana, que se mantém presente até a contemporaneidade, quanto a atuação histórica do conservadorismo inglês na Segunda Guerra Mundial, quando a Europa estava tomada por líderes totalitários, salvaguardaram aquilo que o ensaísta brasileiro, José Guilherme Merquior, pontuou como fundamental para a vigência de uma ordem liberal – a conjunção do constitucionalismo e a democratização da cidadania.
Em comum, as tradições, inglesa e estadunidense, criaram uma cultura política norteadora das dimensões de cidadania na modernidade. Diante das atuais polarizações que enfraquecem a hegemonia ocidental, urge repensar tais tradições em busca de novos consensos, a fim de que as atuais desarmonias não cedam de vez a um novo projeto de poder que não estabelece como uma de suas prioridades a defesa da liberdade.
Victor Missiato é professor de História do Colégio Presbiteriano Mackenzie, Tamboré. Doutor em História e analista político.
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