Rafaela Maximiano
Apesar da existência de leis robustas a violência contra a mulher persiste devido a fatores culturais arraigados na sociedade, como o machismo e a divisão de gênero. A opinião é da delegada Mariell Antonini Dias, da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher, Criança e Idoso de Várzea Grande.
Em entrevista ao FocoCidade, a delegada destacou a importância de mudar a educação desde cedo, eliminando estereótipos de gênero e incentivando uma criação mais igualitária.
Quando questionada sobre a recente chacina em Sorriso, a delegada enfatizou a brutalidade do crime e destacou a eficácia da Polícia Civil, que utiliza recursos e protocolos específicos para casos de extrema violência. Ela ressaltou a importância de aprimorar o cumprimento de penas para evitar a sensação de impunidade.
Sobre a atuação da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher, Criança e Idoso, a delegada elucidou que a unidade desempenha um papel crucial na recepção e investigação de crimes contra esses grupos vulneráveis. Destacou ainda a importância do trabalho em rede, encaminhando vítimas para diversos serviços, como programas de amparo e acompanhamento psicológico.
A Entrevista da Semana também abordou os desafios enfrentados pela delegacia no combate à violência em Várzea Grande, e o trabalho em rede que envolve diversos órgãos públicos. A entrevistada expressou satisfação com os resultados em 2023, evidenciando a ausência de feminicídios no município, resultado da eficiência das ações preventivas e repressivas.
Por fim, a delegada Mariell Antonini Dias transmitiu uma mensagem à comunidade, destacando que Várzea Grande possui uma rede eficaz de enfrentamento à violência. Ela encorajou as vítimas a denunciarem, enfatizando os canais de comunicação disponíveis e a garantia de anonimato para quem busca ajuda.
Entrevista na íntegra:
Como a senhora avalia o atual cenário da violência contra mulheres, crianças e idosos? E quais fatores contribuem para o aumento dessa violência na sua opinião?
Apesar de toda a legislação existente, tanto para a proteção de mulheres, de crianças e dos idosos, nós verificamos que os números de violência, eles são grandes no estado de Mato Grosso e no Brasil como um todo, por isso, desenvolvimento de políticas públicas, de capacitação de servidores, de união de todo o sistema de Justiça com a sociedade civil para trabalhar esse tema. Hoje nós temos uma legislação muito forte, muito capaz de dar uma resposta às situações de riscos que é a Lei Maria da Penha em relação às mulheres, a Lei Henry Borel em relação às nossas crianças e o Estatuto do Idoso.
Em todas essas legislações, nós temos previsão de aplicação de medidas de proteção. Apesar disso, nós ainda verificamos índices altos, mas por quê? A violência é uma questão cultural. Ela vem presente na sociedade desde os primórdios da civilização e essa questão de machismo, de patriarcado, ela é ainda muito presente na sociedade. Nós ainda temos essa cultura de que violência em casa tem que ficar entre quatro paredes, que ela tem que ser invisibilizada em casa, muito presente na sociedade ainda. Que violência contra crianças, contra mulheres, ela é justificável, por uma cultura de gênero que nós ainda vivenciamos, com essa divisão de papéis na sociedade. Nós precisamos mudar isso. Enquanto nós estivermos educando os nossos filhos com essa questão de divisão de gênero, essa violência vai continuar presente na sociedade.
Então, por exemplo, a mulher é educada para ter uma vida pautada em cuidados domésticos, cuidados com os filhos, sem valorização do mercado de trabalho, com uma vida sexual muito recatada e privada, enquanto que os homens nós educamos para ter uma vida social muito ativa, para eles se voltarem ao mercado de trabalho, inserirem-se na vida política, o que nós não ensinamos para as nossas meninas, para que eles tenham uma vida sexual livre e sem tanta preocupação com os cuidados domésticos e educação dos filhos. O que isso causa? Isso causa uma supervalorização de um papel sobre o outro.
Nós supervalorizamos o papel masculino frente à ocupação de espaços de poder na sociedade e nós inferiorizamos o espaço do papel feminino hoje. Com isso, imaginem vocês uma mulher que não está inserida em um mercado de trabalho, ela só cuida da casa e dos filhos, não trabalha fora, não tem independência financeira, quando ela sofre violência doméstica, a tendência dessa mulher é invisibilizar essa violência, guardá-la para o interior da sua casa e ir aguentando essa situação ‘a fio’, anos após anos.
Às vezes ela vai buscar ajuda de um familiar: “escuta minha filha, aguenta mais um pouco, você pode passar, você não tem com quem contar financeiramente”. Essa mulher vai aguentando essa violência. Geralmente, nós, enquanto sociedade, tendemos a repassar essa educação para as nossas filhas e muitas pessoas, quando eu falo isso, me perguntam: “doutora, mas isso não é verdade, hoje nós educamos de forma igual meninos e meninas”.
Mas eu pontuo, olha, pensem na sua casa, se você tem um filho e uma filha, chega na hora do almoço, você pede para quem tirar a mesa? Só para a menina ou para o menino também? Você pede para quem lavar a louça? Só para a menina ou para o menino? Para a menina, nós presenteamos com que tipo de objetos? Bonecas, penteadeiras, maquiagem, nós estamos criando uma cultura de divisão de papéis sem perceber. E para os meninos? Os meninos nós não incentivamos a cuidar da casa, os cuidados domésticos, nós não incentivamos os meninos a cuidar também de bonecas, porque eles também têm que ser pais no futuro, eles também têm que saber cuidar das suas casas. Pelo contrário, nós presenteamos os meninos com videogame, com arma, com bola, com avião, tudo voltado à valorização profissional.
Nós não pedimos para os meninos arrumar a casa, lavar uma louça, ter os cuidados domésticos. Então, com isso, nós continuamos replicando que os cuidados domésticos são responsabilidade das meninas e que os meninos têm que se preocupar com o papel de inserção no mercado de trabalho.
Outra coisa que nós ainda fazemos, a menina, nós valorizamos toda a sensibilidade dela, toda a meiguice. Ensinamos à menina que ela tem que ter uma vida privada, que ela tem que cuidar para sua vida íntima não cair aos ouvidos de ninguém, a ter uma vida sexual recatada. Homens não. Nós ensinamos que os meninos não choram, meninos não sofrem, não mostram sofrimento. Então, nós estamos criando valentões de um lado e meninas sensibilizadas de outro.
Nós precisamos acabar com essa divisão de papéis, essa divisão de gênero que nós vamos passando de geração para geração. Precisamos criar os nossos filhos de forma igualitária, porque a violência doméstica nós vamos conhecer a longo prazo, com a mudança das gerações e para isso cada pessoa é importante. Não adianta pensar que o sistema de Justiça vai conseguir resolver a questão da violência doméstica sozinha, só com a aplicação da Lei Maria da Penha. Hoje nós temos mecanismos para tirar a mulher da situação de risco, para responsabilizar o autor, temos grupos reflexivos para ele entender o caráter lesivo da violência, temos locais para essas mulheres fazerem acompanhamento psicológico para elas entenderem o ciclo da violência a que estão submetidas, mas a educação em casa é a grande chave. É isso que nós precisamos mudar.
Nós precisamos ensinar as nossas filhas uma educação realmente de valorização, com igualdade, ensinando as nossas meninas a buscar independência econômica, financeira para que no futuro elas possam escolher seus parceiros e que elas façam isso instruídas que com o primeiro sinal de violência elas se posicionem, não aceitem e busquem ajuda. É essa a realidade que nós precisamos mudar na sociedade para que no futuro a gente possa colher louros.
Diante da recente chacina em Sorriso, como as autoridades policiais tem lidado com casos de extrema violência e crueldade, ou seja, quais os desafios ao lidar com casos tão chocantes como esses de Sorriso?
Sim, com certeza, enquanto mulher, enquanto mãe, essa situação chocou toda a sociedade porque foi praticada com uma brutalidade sem igual, foram quatro pessoas da mesma família assassinadas, num ato totalmente covarde, com violência sexual, então realmente foi um crime que chocou bastante toda a sociedade e a polícia civil como um todo. Hoje a polícia civil está muito bem equipada, nós temos recursos de trabalho, nós temos inteligência policial, esses casos que nos chegam nós trabalhamos com toda a expertise.
Casos de estupro, casos de feminicídio, nós temos protocolos a seguir e nós buscamos os elementos de informação para comprovar a autoria, sempre agindo com firmeza e dando a resposta necessária no caso. Muitas vezes nós colhemos elementos datiloscópicos, elementos biológicos que conseguimos fazer confronto e realmente demonstrar a autoria dos delitos. São crimes que são investigados com muita atenção para que não haja equívocos e o autor tenha a resposta criminal merecida.
A senhora acredita que as punições previstas são suficientes para dissuadir potenciais agressores, pois existem quem defenda a prisão perpétua para casos como o de Sorriso, de extrema crueldade. Concorda?
Esse debate é bom para ser feito a nível político, mas o que eu vejo hoje como aplicadora da lei é que nós deveríamos melhorar na questão do cumprimento de penas. Então, para esses casos em que há uma condenação, regime aberto ou regime semiaberto, nós aqui no Estado de Mato Grosso poderíamos melhorar o cumprimento de pena para que realmente esses autores venham a cumprir a pena de acordo com o que a legislação determina. Muitas vezes o autor vai no Fórum, assina o papel uma vez ao mês e essa é a pena que ele recebe por falta de um regime semiaberto, adequado. Então pode gerar aquela sensação de impunidade.
Pode nos contar um pouco sobre o papel e as responsabilidades da Delegacia Especializada de Defesa da Mulher, Criança e Idoso de Várzea Grande?
A Delegacia da Mulher, da Criança e do Idoso tem um papel muito importante perante a sociedade porque nós recebemos a demanda de três públicos de vulnerável que só crescem na sociedade. Porque quando nós observamos a maioria do número de eleitores já é feminino, então as mulheres estão crescendo muito na sociedade, idosos as pessoas só estão envelhecendo, e as crianças têm recebido muita informação tanto pelos meios de comunicação, pelo celular, nas escolas. As crianças estão buscando um mecanismo de fazer denúncia, junto às escolas, junto ao conselho tutelar. A delegacia da mulher tem um papel muito importante, de receber essa demanda e fazer as investigações necessárias.
Hoje, se uma mulher vítima de violência doméstica, ou um idoso, ou uma criança reporta algum crime, a primeira coisa que nós avaliamos é se tem necessidade de pedir uma medida protetiva, se há uma situação de risco seja uma medida de aplicação mais célere para retirar essa pessoa do risco iminente que ela está sofrendo.
Esse é o nosso primeiro papel. Feito isso há uma investigação, buscamos testemunhas, elementos informativos, depois passa-se ao interrogatório do autor e conclusão com a remessa do procedimento ao judiciário. Em meio a isso nós temos todo um papel preventivo também analisado pela delegacia.
Por quê? Nós encaminhamos essa vítima para a Patrulha Maria da Penha, para os CREAS, para a Lírios para fazer acompanhamento psicológico, para acompanhamento reflexivo do autor que é feito pela Univag ou pelo Poder Judiciário; nós encaminhamos a vítima para casa de amparo se tem risco, acionamos o Conselho Tutelar se uma criança ou adolescente precisa de um acolhimento, caso do idoso também representamos por medida cautelar se é adversa da prisão, se há uma situação de risco para o idoso. Então, tem toda uma atuação em rede que muitas vezes é iniciada na delegacia de polícia.
Hoje também as nossas vítimas de violência doméstica, há um filtro que é feito pela delegacia para encaminhamento ao programa Família Mulher onde ela pode receber o benefício para custear pagamento de aluguel ou de alimentos. Toda essa filtragem também é feita pela delegacia, são vários serviços que a delegacia faz o encaminhamento para as vítimas.
E também hoje nós fazemos o encaminhamento para a Casa de Sarita, que foi inaugurada em Várzea Grande, é muito importante, um projeto lindo desenvolvido pelo município onde as mulheres, independente se sofrem violência doméstica ou não, as mulheres têm condições de fazer o acompanhamento pela saúde, também tem condições de fazer um trabalho de estudo para encaminhamento ao mercado de trabalho. Pode fazer uma capacitação, pode fazer um acompanhamento de saúde, florais de bach, psicológico, pilates, hidroginástica. São várias qualificações que podem ser feitas na Casa de Sarita. As vítimas estão gostando muito, então nós encaminhamos também.
Quais são os principais desafios enfrentados pela delegacia no combate à violência aqui no município?
Nós trabalhamos em rede em Várzea Grande, nós não fazemos o trabalho de outras instituições. Tudo que tem que ser melhorado em situação de rede, nós conversamos em rede. Fazemos um monitoramento, quem coordena todo esse estudo é o Ministério Público, há um monitoramento anual sobre as nossas atividades. Nós verificamos onde estamos com pontos fortes, pontos fracos na rede e o que pode ser melhorado. Toda a dificuldade que eventualmente nós observamos, trabalhamos em reunião, formamos grupos de trabalho justamente para melhorar o serviço.
Nesse ano de 2023 nós não tivemos feminicídio em Várzea Grande, nós trabalhamos com muita presteza mesmo.
A vítima chegou, afirmou que é descumprimento, e se é um caso grave, nós representamos pela prisão ou fazemos o flagrante. Não dá para pedir prisão em todo descumprimento porque tem casos de descumprimento que não é grave.
Muitas vezes o autor entra em contato por conta de filhos, mas tendo risco, nós pedimos a prisão. O nosso trabalho aqui é muito célere e vinculado com o Judiciário, com o Ministério Público. Realmente está fluindo muito bem. Resultado disso é que nós não tivemos feminicídio esse ano, então pretendemos continuar com esse mecanismo de trabalho em 2024.
Qual mensagem a senhora gostaria de transmitir à comunidade de Várzea Grande e a sociedade em geral, em relação à prevenção e combate à violência?
Eu só quero pontuar que aqui o trabalho, nós fomos muito felizes em Várzea Grande porque vários serviços que estão previstos para existir na rede, realmente aqui têm implantado. Se a vítima precisa de um acompanhamento psicológico, ela é acompanhada pela Lírios ou pela Casa de Sarita. Se o autor precisa passar para um grupo reflexivo, nós temos o grupo reflexivo Ser Mais Consciente, que é pela Univag ou pelo Poder Judiciário.
Precisa de um acompanhamento da Patrulha Maria da Penha, nós temos pela Guarda Municipal e pela Patrulha da PM. Se precisa ser acolhida, Casa de Amparo; se a mulher vítima precisa pagar, custear um aluguel, tem o programa Ser Família Mulher, nós encaminhamos. Então Várzea Grande, realmente, ela está bem acolhida pelos serviços, agora foi criada a Casa de Sarita para somar com toda essa rede.
Temos a Delegacia Especializada, que já atende os três públicos de vulneráveis, que também está bem equipada, tanto de material quanto de servidor. Temos o Judiciário, Vara Especializada, Defensoria Especializada, a Promotoria também especializada. Várzea Grande está bem atendida pelo sistema de Justiça. E tem todo o monitoramento que é feito por uma das redes mais eficazes do Estado de Mato Grosso, que é a rede de enfrentamento à violência contra a mulher. Realmente, o serviço está fluindo muito bem.
E para fazer denúncias o número é 190 que é da PM, 197 que é da Polícia Civil. Quero fazer uma denúncia anônima, doutora, como eu faço? 1-8-1, chega para nós de forma anônima, nós vamos apurar. E tem o 1-8-7, que também chega a denúncia para a gente. Todos esses mecanismos, a pessoa pode fazer a denúncia anônima, que chegará para a delegacia apurar.
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