Rafaela Maximiano
No primeiro domingo de ano novo, oito dias após a posse do presidente reeleito Luiz Inácio Lula da Silva (8), manifestantes golpistas invadiram a Esplanada dos Ministérios e depredaram as sedes dos Três Poderes – o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Os atos antidemocráticos chocaram o Brasil e repercutiram internacionalmente.
Para entender a situação social e política em torno dos acontecimentos em Brasília, o FocoCidade entrevistou a professora doutora, Alair Silveira, do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Segundo a especialista: “tivemos - real e efetivamente - uma tentativa de golpe de Estado... gestada nos últimos quatro anos”.
A pontuação da professora de Ciência Política se refere a fatos anunciados, não somente aos acampamentos em áreas de segurança do Exército, mas também “nos grupos de WhatsApp de empresários abertamente golpistas, no desrespeito à Constituição e aos protocolos básicos, no fomento à violência e ao armamento, na promoção da cultura de ódio e de desprezo aos ‘outros’, na criminalização da política, na irresponsabilidade institucional como demonstração de virilidade, na apologia à ignorância e à irracionalidade, etc”, cita.
A Entrevista da Semana também aborda a repercussão política e social dos atos de 08 de janeiro; a violência civil e política vivida pela atual sociedade brasileira; suposições de guerra civil; omissão das Forças Armadas; fake news, o neofascismo e a possível prisão de Jair Bolsonaro.
Confira a entrevista na íntegra:
Qual a repercussão política e social do ato terrorista praticado por bolsonaristas radicais e inédito na história da democracia brasileira?
A tentativa de golpe tem consequências de várias ordens. Para além da gravidade de uma tentativa de golpe que foi ampla e ostensivamente anunciada, há que considerar seu processo de gestação. Se recuarmos em apenas quatro anos, o ovo da serpente foi gestado através de múltiplas manifestações articuladas e cumulativas: no desrespeito à Constituição e aos protocolos básicos, no fomento à violência e ao armamento, na promoção da cultura de ódio e de desprezo aos “outros”, na criminalização da política, na irresponsabilidade institucional como demonstração de virilidade, na apologia à ignorância e à irracionalidade etc.
Nenhuma dessas inúmeras manifestações foi efetivamente enfrentada pelo Poder Legislativo Federal - especialmente pela Câmara Federal e os mais de 150 pedidos de impeachment que não prosperaram. O Judiciário, por sua vez, somente passou a atuar de maneira mais consequente e regular quando seus próprios membros passaram a ser objeto da virulência dos ataques. Assim, a omissão institucional não ocorreu somente no dia 08 de janeiro deste ano. Ela deita raízes em tempos anteriores.
A tentativa de golpe foi gestada, acalentada, exposta, testada, acompanhada nas redes e na mídia. Dentre os vários indicativos quanto aos objetivos finais estavam os atos ocorridos em setembro de 2021, os acampamentos em áreas de segurança do Exército, os grupos de WhatsApp de empresários abertamente golpistas, os ataques violentos em alguns estados, as ações da PRF no segundo turno das eleições, a experiência piloto do dia 12 de dezembro de 2.022 na sede da PF, em Brasília, inclusive quanto aos desdobramentos penais.
Como epílogo de uma tragédia anunciada, a omissão institucional alcançou órgãos de Estado, governos estaduais e municipais coniventes, assim como legislativos - nas três esferas do Poder; e, portanto, não pode ser compreendida ou restringida ao dia 08 de janeiro deste ano. Afinal, diferentemente do que ocorreu no Capitólio, nossos golpistas não somente anteciparam suas ações ao longo dos últimos anos, senão que não se restringiram a um único Poder, mas aos três Poderes que compõem o Estado. Então, diferentemente do que se caracterizou como golpe de Estado em 2016, em 2023 tivemos - real e efetivamente - uma tentativa de golpe de Estado.
Como explicar essa violência civil e política? De onde vem essa antidemocracia em grupos da sociedade?
O neofascismo é bem anterior ao bolsonarismo. Na verdade, Bolsonaro foi a personificação de um movimento de intolerância social que assumiu proporções impressionantes, garantindo sua eleição. Essa intolerância social oportunizou a capilaridade de ideias neofascistas, assim como a “desenvoltura” de um Presidente abertamente afeito àquelas ideias, assim como ao golpismo.
Grupos abertamente antidemocráticos não ultrapassavam 11%, em 2021, segundo Latinobarómetro. Esse percentual não parece ter aumentado, apesar do que aconteceu domingo. Por quê? Porque o desapego à democracia ou a indiferença com relação ao regime político não significa ser contra a democracia. Além disso, a eleição de Lula demonstra que a grande força para sua eleição não foi, necessariamente, adesão à sua figura ou ao seu programa de governo, mas a preservação do regime democrático, afastando o risco institucional com eventual reeleição de Jair Bolsonaro.
É preciso lembrar que a intolerância social acima referida está articulada tanto à crise econômica quanto ao ressentimento político (politicamente explorado) e o individualismo imediatista. A força do antipetismo de 2018 não se repetiu em 2022. Mas ele não foi derrotado. Ele ainda tem combustível para se alimentar do ressentimento, da falta de perspectivas e do egocentrismo. Esse individualismo imediatista se expressa através das redes, mas, não surge delas. A hegemonia da cultura pós-moderna e da pós-verdade garantiram a fertilidade das fakes e das “narrativas”, as quais parecem descoladas do conhecimento e da prova. Não por acaso, o neofascismo ataca a ciência, o conhecimento e as universidades. E, tal qual o fascismo, transforma a cultura, jornalistas e professores em seus alvos preferidos.
O Brasil corre o risco de ter uma guerra civil?
Não me parece nada provável no horizonte curto da história. Ressalvando que já vivemos uma espécie de guerra civil com tanta miséria, injustiça e desigualdade social, uma guerra civil clássica me parece descartada. Por quê? Porque o momento mais crítico foi o eleitoral. Entretanto, a rápida reação de reconhecimento internacional à vitória de Lula, a firme atuação do TSE, a heterogeneidade do Exército, a força da vontade social manifesta nas urnas e atitudes de recuo de algumas figuras públicas quanto ao resultado das eleições foram demonstrativos de que não havia ambiente internacional nem nacional para um golpe.
Como os golpistas não são embalados pela lógica ou pela racionalidade, a “narrativa” da salvação da pátria pelas forças armadas foi reanimada por outras datas e oportunidades.
As Forças Armadas e de segurança, que agiram com omissão no domingo de 8 de janeiro, vão poder continuar apoiando, mesmo silenciosamente, esse tipo de movimento golpista?
Como disse anteriormente, as Forças Armadas (FA) não são homogêneas. O grande desafio, nesse sentido, é garantir que predomine aqueles segmentos que defendem o cumprimento constitucional atribuído às FA. A posse do novo ministro da Marinha foi bastante expressiva nesse sentido. Porém, minoritária.
A resposta aos atos de domingo pelo novo Governo e pelo Judiciário - intervenção em Brasília, prisão e identificação das pessoas envolvidas, fim dos acampamentos nos Estados e continuidade na rotina de trabalho dos Poderes em Brasília - é suficiente para parar esses atos?
Essas respostas, assim como a efetiva prisão daqueles que atuaram e financiaram, alcançando toda a rede de articulação que possibilitou os atos de domingo e que, como disse antes, não se limitam ao dia 08 de janeiro deste ano, é imprescindível, inadiável e, concretamente, elemento fundamental da credibilidade do Governo Federal e do Judiciário.
A participação dos governadores de todos os estados e do DF na reunião do dia 9 de janeiro, em Brasília, juntamente com ministros do STF e da PGR com Lula demonstra convergência institucional com relação ao Golpismo, esvaziada as suas chances de sucesso. Consequentemente, aqueles que apoiavam aberta ou veladamente recuaram, aderindo ao movimento em defesa da ordem estabelecida.
Essa convergência, contudo, precisa ser rapidamente aproveitada para os movimentos de punição aos responsáveis, posto que a aposta na amnésia coletiva é parte da nossa cultura política.
Já havia boatos de que o ex-presidente Jair Bolsonaro seria preso ou ficaria inelegível, com os atos recentes essa possibilidade se tornou real?
Possibilidade concreta com tantos elementos estabelecendo os vínculos, especialmente a partir dos documentos encontrados na casa de Anderson Torres. Me parece que a corda foi tão esticada que mesmo aqueles que poderiam dar guarita estão acuados. Porém, ainda é cedo para saber se a possibilidade vai se converter em probabilidade.
Após esses atos terroristas como fica o eleitorado de extrema direita? Vai continuar existindo? Por exemplo, o que será de Nikolas Ferreira, Carla Zambelli e outros fiéis seguidores de Bolsonaro?
O bolsonarismo é maior que Bolsonaro, portanto, sim. Esse eleitorado está momentaneamente órfão. Não que haja falta de figuras que poderiam cumprir esse papel. Mas, esse é um momento de refluxo. Mas, refluxo não é término. É movimento. A pesquisa do DataFolha de 12/01, identificou que 93% condenam os acontecimentos de domingo, 55% responsabilizam Bolsonaro e 16% afirmam que mudaram de opinião com relação ao ex-presidente após o ocorrido em Brasília, ou seja, não são números animadores para quem pretende substituir o “mito”, identificando-se com esse público.
Como se explica bolsonaristas só acreditarem em fake news, isolados numa bolha irreal? A mentira que passou a valer como verdade...
Como já falei, a pós-verdade é um movimento embalado pela cultura pós-moderna. Assim, embora a pós-verdade seja bastante identificada ao trumpismo, ela surfa nos elementos da cultura pós-moderna, das narrativas, da especificidade, do imediato, do hiperindividualismo e da percepção, da imagem e do espetáculo...
A prisão e punição dos extremistas/golpistas e de seu entorno é fundamental para minimizar o impacto da corrente fascista/nazista que tem como “pai” o ex-presidente Jair Bolsonaro?
Com certeza. Tolher, responsabilizar, punir, reestabelecer o respeito à legislação e recuperar o senso de pertencimento ou responsabilidade social, com o respectivo zelo pela coisa pública - tão açoitados pelo projeto neoliberal, há mais de 30 anos no Brasil, embora não ponha fim a esses movimentos que são muitos, permitirá reduzi-los ao seu real tamanho.
É preciso recuperar e desenvolver o senso de convivência democrática e, junto com isso, a tolerância política e convivial como parte do cotidiano. Para isso é preciso que a democracia não seja somente política partidária, mas social.
Omissão também é um pecado? E como a senhora avalia a responsabilidade de autoridades que alimentaram as manifestações - dizendo que eram “pacíficas”, quando sempre foram antidemocráticas porque questionaram o resultado eleições e pediram golpe?
A responsabilidade, como respondi, não deve recair somente àqueles que estão em evidente e imediatamente exposição, como o Governador do DF e o ex-Secretário de Segurança, comandantes de forças policiais, etc.
É preciso que se faça uma avaliação que ultrapasse o imediato e remonte às omissões que se propagaram, gestando a serpente que saiu do ninho não somente no dia 8 de janeiro, mas ensaiou passeios antes da Praça dos Três Poderes. É preciso que, diferentemente do que foi feito no processo de redemocratização brasileiro, os acordos de conveniência econômica-política-partidária não se façam soberanos sobre a soberania da sociedade civil que já condenou, de forma contundente, a tentativa de golpe.
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