• Cuiabá, 12 de Julho - 2025 00:00:00

Edna Sampaio: Estatuto de Promoção e Igualdade Racial, desafios e defesa da Democracia


Rafaela Maximiano

“O racismo não é um problema dos pretos apenas. É um problema dos pretos, dos brancos e de todos aqueles que querem viver numa sociedade democrática." A análise é da vereadora por CuiabáEdna Sampaio (PT). Ela é autora do Estatuto Municipal de Promoção e Igualdade Racial que foi sancionado neste mês de dezembro em Cuiabá e promete ser o maior instrumento, principalmente para a população negra da capital, para garantir seus direitos.  

“Porque obviamente a aprovação da lei não é automaticamente a implementação do direito, mas é um marco da luta para que esse direito possa ser implementado” declarou a legisladora.  

Na Entrevista da Semana ao FocoCidade a vereadora também fala sobre a luta pela igualdade da mulher negra na sociedade, a violência contra a mulher negra, democracia racial, polarização, manifestações contra o resultado das eleições, a chegada do Partido dos Trabalhadores novamente à presidência do país.

“O ano de 2022 nos traz um grande desafio que vai além do governo Lula até os próximos anos, de defender as instituições, a democracia, o direito, a paz social e as condições de podermos avançar enquanto sociedade”, pontua.  

Edna Sampaio é professora da Universidade do Estado de Mato - UNEMAT desde 1994 e atuou como Gestora Governamental da Secretaria de Estado de Planejamento e Coordenação Geral de Mato Grosso. É graduada em Serviço Social pela Universidade Federal de Mato Grosso, Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.  

Boa leitura!  

Sobre o Estatuto Municipal de Promoção e Igualdade Racial que foi sancionado na última semana. O que é essa legislação e o que ela representa para a sociedade cuiabana, principalmente a população negra? 

Essa lei espelha o Estatuto Nacional da Igualdade Racial que foi aprovada ainda nos governos do PT. Tem o sentido de orientar e dar diretrizes para o governo municipal sobre as políticas que devem ser formuladas para a população negra. Isso porque nós temos uma desigualdade fundada na desigualdade racial, o que é comprovado por diversas pesquisas e estatísticas, então não podemos instituir políticas públicas apenas generalistas e sim focar naquela população que tem tido dificuldade de acesso aos serviços públicos, inclusive. E, essa é a população majoritariamente negra. 

No campo da Educação, por exemplo, essa legislação dá diretrizes que determina na formação de professores e no ensino de nossos alunos sobre a história da África. Também tem a questão da ampliação das cotas para a participação da população negra nos mais diversos espaços e instituições; aborda a questão dos quilombolas, das mulheres negras, do fortalecimento do empreendedorismo negro para que tenhamos políticas municipais de apoio a iniciativas principalmente às mulheres negras. 

O Estatuto aborda também a saúde da população negra, pois sabemos que existem doenças que acometem principalmente esta população, então, ele é um amplo escopo de direcionamento das políticas municipais para o atendimento da população negra, que vai desde a educação, passando pela saúde, mercado de trabalho, visando também a população quilombola e de mulheres. E essa legislação se soma também à questão dos imigrantes, onde já temos aprovada e falta o município implementar. 

O Estatuto é para a sociedade e para a população negra um instrumento de luta para a garantia dos seus direitos. Porque obviamente a aprovação da lei não é automaticamente a implementação do direito, mas é um marco da luta para que esse direito possa ser implementado.  

Como foi elaborado o Estatuto, houve participação da sociedade, do movimento negro e universidades, por exemplo? 

A nossa assessoria apresentou uma proposta a partir das demandas em debate, com essa primeira versão fizemos uma audiência pública no ano passado, que foi o primeiro ano do nosso mandato. Disponibilizamos a proposta para que todas as pessoas interessadas no debate pudessem contribuir. Também chamamos diferentes organizações do movimento negro, da universidade, do IFMT, núcleos de pesquisa, e outros para contribuir, de modo, que ao final apresentamos uma proposta construída e lapidada pelo conjunto de pessoas que se dispuseram a participar.  

E, com relação a luta pela igualdade da mulher negra na sociedade, o que avançou e o que ainda precisa ser feito? 

Essa pauta, como qualquer outra, não avança se não tivermos movimento. Precisamos ter na sociedade organização das pessoas para cobrar o poder público e para definir essas políticas públicas. No caso do racismo estrutural e institucional, em Cuiabá que é meu âmbito de trabalho, nós ainda precisamos ampliar o debate e a compreensão sobre o que é o racismo. 

Eu sou cuiabana e sei muito bem que falar do racismo é um tabu e um grande incômodo. E tenho vivido isso enquanto vereadora na Câmara Municipal de Cuiabá. Em todos os espaços falar do racismo é sempre uma dor sempre negada. A primeira posição das pessoas é negar que exista o racismo. Por exemplo, já se dirigiram a minha e pessoa: “mas Edna você não é negra!”, como se essa frase - dirigida a mim que sou uma mulher negra e consciente da minha condição – fosse algum elogio e não o resultado de um racismo cultural introjetado e a gente pouco percebe. 

Então, várias decisões do poder público acabam sendo reflexo de um racismo estrutural porque fortalecem as barreiras de acesso da população negra aos serviços públicos. Um exemplo, quando o poder público – municipal e estadual - resolveram durante a pandemia centralizar o atendimento de diagnóstico e tratamento da covid deixou para trás centenas de trabalhadores e trabalhadoras negras que moram nas periferias, que não têm internet, que não têm celular, que não acompanham o noticiário e, que, portanto, não puderam fazer a inscrição para vacinação e tomar a vacina em tempo. 

Tanto é que em Cuiabá, em Mato Grosso e no Brasil inteiro é a população negra que mais veio a óbito por covid. Essas atitudes que parecem tão banais e triviais acabam fortalecendo o muro que existe entre os recursos públicos, o acesso às políticas públicas e à população negra. 

Aqui em Cuiabá nós não temos por muito hábito debater no espaço público a questão racial porque é muito raro ter uma pessoa preta ocupando esse espaço. Mas eu vejo que nossa sociedade já amadureceu e vê quantas mazelas são produzidas pelo racismo, quanta exclusão e violência temos produzida pelo racismo, e, está na hora de abrirmos essa “caixa” no espaço público para as pessoas compreenderem o que é o racismo e quais as consequências dele. Muitas pessoas também acham que o racismo é apenas injúria racial apenas e é muito mais profundo do que isso. 

Quanto as terminologias: pessoa preta e pessoa negra, como elas se encaixam na nossa dita “democracia racial”? 

Eu acho que todos os movimentos que foram feitos ao longo da história do Brasil foram feitos para que tivéssemos uma ideia que temos uma democracia racial. E como nós não tivemos leis que proibissem negros de fazer algo, a exemplo de leis que proibiram negros de entrar em igrejas, de entrar nos ônibus, como nos Estados Unidos no Apartheid; se propagou muito no país a questão da democracia racial mas percebemos que apesar de não termos presenciado essas leis que proíbam negros e negras de frequentar determinados lugares, essa lei existe porém não é inscrita no código jurídico nosso mas está inscrita no nosso inconsciente e na forma como a gente lida com as pessoas negras. 

Por exemplo, nos restaurantes da capital é mais fácil vermos os negros sendo trabalhadores e não frequentadores dos espaços; nas universidades, até pouco tempo era um lugar quase exclusivo de brancos principalmente os cursos de medicina e direito. A cota alterou essa composição das universidades também. Então tudo isso que foi construído com ausência do poder público ou com o Estado agindo para subir esse muro e impedir que pretas e pretos acessem o poder foi sendo naturalizado na consciência das pessoas. Temos exemplos de policias que mesmo sendo pretos, ao verem meninos da periferia, vinculam aquela imagem à ideia de suspeito, de criminalidade. Então, não é por outra razão que há tanta violência policial contra os jovens negros e somos campeões em assassinato de jovens negros. 

Todos esses cenários que demarcam a ausência da população negra nos espaços de circulação, do usufruto de direito e de poder não naturalizados. Avalio que essa ideia da democracia racial que precisamos desmistificar mostrando que ela não existe e que embora não tenha nenhuma lei proibindo elas de ocupar qualquer espaço nós não ocupamos pois existem barreiras invisíveis que impedem a população negra e que o Estado e o Município precisam olhar para isso e definir políticas públicas que cheguem até essa população. Também olhar para a condição dessa população para que as políticas públicas não sejam definidas a partir de um gabinete sem considerar as condições objetivas dessa população e o Estatuto é importante para isso. E, a ideia da igualdade racial acabou tornando turva a visão da população para a realidade da pessoa negra. 

Sobre a terminologia negro e preto, não gosto muito de entrar nessa discussão pois é mais conceitual. E, quando falamos em raça, não estamos falando da existência real de uma raça, até porque todos somos da raça humana. Quando falamos de raça, estamos falando de uma construção racial que foi feita numa sociedade racista e atribuiu a hierarquia entre pessoas brancas e negras, ou seja, racializou a sociedade. E, nessa hierarquia sempre pensamos raça fosse apenas a negra e os brancos não fosse raça. A própria terminologia precisa ser compreendida na perspectiva de pessoas pretas e não pretas, as brancas. Por isso que o racismo não é um problema dos pretos apenas. É um problema dos pretos, dos brancos e de todos aqueles que querem viver uma sociedade democrática.  

Como a avalia a situação da violência contra a mulher negra atualmente? 

Eu não estou com o atlas da violência em mãos, mas já o analisei, e, nesse último período vemos que a violência contra a mulher branca teve uma diminuição e contra a mulher negra teve um aumento significativo. Vejo que o racismo também é responsável por colocar as mulheres negras como as maiores vítimas da violência de gênero. Por isso que a questão racial não é pontual, que não deve ser discutida apartada das outras políticas públicas. Quando a gente fala em igualdade racial não falamos de um ponto e sim que tem que perpassar todas as políticas públicas, desde a prevenção à violência, que tem muito a ver com o empobrecimento das mulheres e quem mais empobreceu na pandemia foram as mulheres negras em sua maioria chefes de famílias que dependem do seu labor para sustentarem sozinhas suas famílias, muitas inclusive vivem com homens que não têm renda mas na hora da autonomia e do poder do casal acabam sendo subjugadas e violentadas pelos parceiros. Isso inclusive faz parte das minhas memórias de infância e adolescência, das mulheres negras e seus relacionamentos abusivos com seus parceiros. 

A violência contra a mulher não tem apenas um fator, mas diferentes fatores e entre eles está a questão do racismo e do machismo contra as mulheres e seus corpos. Por isso que não podemos separar a questão racial, da questão econômica e da questão de gênero. São três fatores que incidem sobre a desigualdade e a violência contra a mulher no mundo e principalmente no Brasil. Os mais pobres não pretos, os mais pobres são mulheres. Por que hoje falar da população negra, da mulher negra e a violência sobre ela, sem falar da questão econômica é falar da perfumaria. E o Estatuto também prevê esse apoio ao empreendedorismo da pessoa negra.  

O momento político vivido pelo país com manifestações antidemocráticas, a forte polarização de ideias políticas e a chegada do PT novamente à presidência do país. Qual sua análise política desse ano de 2022? 

Dois mil e vinte e dois só pode ser compreendido se voltar e olhar para trás: 2016 ou 2013, até chegar em 2022. E vejo que apesar do golpe que sofremos em 2016 as instituições democráticas liberais sobreviveram. Nós tivemos eleições e apesar das tentativas e dos crimes eleitorais praticados para fraudar as eleições, tivemos um resultado que é da vontade popular.

Portanto as instituições brasileiras estão de parabéns e apesar de Bolsonaro, garantiram que houvesse eleição, transição e ao vencedor fosse conferida a vitória, e isso é muito importante. Agora, nós temos um problema muito sério para lidar que é exatamente uma porção significativa da população que se perdeu no caminho e está completamente despreparada para o convívio democrático e faltam com respeito às instituições. Essas pessoas precisam ser punidas exemplarmente porque dentro do campo democrático as nossas divergências precisam ser conformadas. A disputa não pode extrapolar a democracia. As disputas precisam se dar dentro dos marcos democráticos. E o que estamos vendo são pessoas, e não são poucas, reivindicando o fim da democracia, utilizando a prerrogativa da liberdade de expressão que a própria democracia permite para poder pedir a ditadura militar que é o estado do terror e da violência. 

Essas são atitudes inaceitáveis do ponto de vista da democracia, pois não significa que a pessoa tem direito a expressar e a falar tudo. Na democracia existem limites que permitem o convívio e a manutenção da própria democracia. O que estamos vendo são ações criminosas e fico muito feliz que o Supremo Tribunal Federal e o ministro Alexandre de Moraes tenham tomado as providências cabíveis contra esses empresários que querem manipular a opinião pública e fraudar o processo eleitoral depois dele consolidado. 

Todo esse cenário coloca para nós que defendemos a democracia um desafio que vai além do governo Lula, até os próximos anos, de defender as instituições, a democracia, o direito, a paz social e as condições de podermos avançar enquanto sociedade. Por exemplo, eu não poderia estar discutindo a questão do Estatuto da Igualdade Racial em um regime ditatorial, governado por militares. E, eu espero que após a posse do Lula essas pessoas que cometeram crimes eleitorais, elas não sejam anistiadas e possam pagar pelos crimes que cometeram contra a sociedade, contra a democracia.  

Como avalia esse seu primeiro mandato e o que planeja para seu futuro político? 

Sou uma pessoa já com idade avançada, vou fazer 56 anos no início de 2023, porém comecei tarde na política eleitoral. Esse é meu primeiro mandato, mas política eu faço desde os meus 16 anos. Tenho muita disposição de continuar a fazer um papel que julgo ser importante e o coletivo que constrói nosso mandato também. Meu mandato é mais conceitual, minha forma de atuação diferenciada. Não é melhor nem pior, é apenas diferente.

E avalio que é preciso diferentes perfis de políticos para dar conta da demanda da sociedade que é enorme. No meu caso, procuro trabalhar em temas que sejam muitos importantes e afetem não somente um bairro ou uma região, mas toda a população, a exemplo do Estatuto da Igualdade Racial. Depois dele nós vamos lutar pelo Estatuo contra a discriminação e a violência contra as pessoas LGBTQIA+. O Estatuto já está pronto e queremos também que seja aprovado e sancionado. 

Nós fizemos também um combate duro e continuamos fazendo, sobre a política de transferência de renda, pois não podemos admitir que as pessoas na capital de um Estado tão rico revirem lixo para se alimentar. Apresentamos projeto e emenda. Denunciamos o prefeito e o governador por omissão através de um mandato de junção. Já fizemos três audiências com um mediador do Tribunal do Justiça para chegar a um acordo da representação dos Poderes Executivos Municipal e Estadual para instituírem uma política de transferência de renda. Esse é um tema muito caro para nós e que beneficia toda a população cuiabana. 

Aprovamos a lei de absorventes que beneficia toda a população que menstrua em Cuiabá. Agora vamos trabalhar para aplicar essa lei. Destinamos R$ 350 mil para iniciar uma fábrica de absorvente como forma de geração de trabalho e renda para mulheres em situação de extrema vulnerabilidade já em 2023 entraremos em contato com a Secretaria de Mulheres para execução. 

Também fazemos indicação e denúncias de falta de remédios nos postos de saúde dos bairros, do buraco na rua, mas além disso queremos que a população cuiabana possa contar com um marco legal que beneficie de forma definitiva o conjunto da população e possam protagonizar a luta pelos seus direitos tendo essas leis à sua disposição. 

Em 2023 quero fortalecer o caráter participativo do meu mandato, também visando as eleições. Mas fora do mandato executamos projetos de hortas agroecológicas na cidade como estratégia de combater a fome no município e gerar renda em bairros periféricos, por exemplo. Arrecadamos alimentos para doação a quem mais precisa, acompanhamos desocupações, entramos com ações, encaminhamos a emprego. Então avalio que temos um mandato bastante ativo, fui candidata a deputada federal nessas eleições e fiquei como suplente. Avalio que fizemos um belíssimo trabalho até aqui fruto de um mandato coletivo que temos. 

Acredito que esses espaços de poder precisam ser ocupados por mulheres negras, homens negros, pelas pessoas mais pobres e por aqueles que mais sofrem. Se a gente não se coloca esse espaço fica vazio ou será ocupado por outros segmentos e nesse momento sou candidata a vereadora, mas estou à disposição do meu partido para defender essas lutas como o fiz até agora. Mas o meu maior objetivo é ocupar esses espaços para construir a possibilidade de outras pessoas, especialmente as mulheres negras, possam também ocupar pois, afinal, somos a maioria.  




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